Imprensa profissional espalhou “fake news de verdade” sobre fala de Jungmann; a falsa notícia também pode estar nos fatos
Os jornalistas precisam ficar atentos às várias formas que podem tomar as "fake news". A mais perigosa delas é a notícia falsa composta só de verdades. Como isso é possível? Vamos ver. Basta que uma informação seja mal e porcamente contextualizada, e se corre o risco de inverter uma situação, transformando, por exemplo, uma ação positiva do Poder Público numa notícia depreciativa, negativa e, como é caso de que vou tratar, alarmista.
Praticamente todos os sites noticiosos, TVs e rádios fizeram alarde de uma fala do ministro da Defesa, Raul Jungmann, segundo quem "é plausível" que criminosos deixem o Rio, migrando para outros Estados. O que é de uma obviedade estupefaciente ganhou títulos garrafais, como a dizer nas entrelinhas: "Vão tentar diminuir a violência do Rio espalhando a desordem para outras unidades da federação".
Vamos lá. De saída o ensejo da fala foi dado pelo próprio governo, que reuniu os secretários de Segurança Pública dos três Estados que fazem fronteira com o Rio — São Paulo, Minas e Espírito Santo — justamente para definir uma atuação especial de suas respectivas forças de segurança em face da nova realidade.
Muito bem! Indagado sobre a possibilidade de haver uma migração da criminalidade do Rio, sob intervenção, para Estados vizinhos, Jungmann disse o óbvio: trata-se de algo "plausível". O sentido primeiro da palavra, que guarda nexo com a etimologia, já se perdeu: "plausível", originalmente, quer dizer "digno de aplauso", que merece ser saudado.
O tempo se encarregou de fazer com que a palavra desse um salto. Dado que o que é "digno de aplauso" passa a ser também "aceitável", o sentido passou por um deslocamento, e o plausível se tornou o "razoável", que é o adjetivo do verbo "razoar", isto é, quando se faz uso da razão para estabelecer relações entre coisas e fatos, para entender, deduzir ou julgar algo. O sinônimo mais próximo é "raciocinar".
Qualquer um que raciocine um tanto ficará atento à possibilidade de que criminosos, percebendo estreitado seu espaço de atuação, migrem para outro. Trata-se, em suma, de algo "plausível". E era essa plausibilidade que estava na raiz, na causa, no motivo da reunião dos três secretários de Segurança com o ministro da Justiça.
Pergunto a vocês e a meus colegas jornalistas: o ministro da Defesa poderia ter dado uma resposta distinta daquela que deu? Seria aceitável que dissesse: "Ora, de modo nenhum! Isso jamais acontecerá! Não contamos com essa possibilidade!" Ora, só o faria se fosse maluco. Até porque seria preciso combinar antes com os marginais, certo? Assim, ele deu a única resposta possível, a única resposta razoável, a única resposta adequada à razão, a única resposta prudente: trata-se de algo "plausível" e, por isso mesmo, o governo reuniu os secretários de segurança; para que se tomem as medidas preventivas.
Cada vez mais tem faltado edição ao jornalismo. Cada vez mais, a praga da ligeirice militante das redes sociais contamina as redações e a imprensa profissional. Só há um sentido decente para o evento desta quinta, com variação apenas nas palavras: "Governo reúne secretários de três Estados para tentar evitar migração do crime". PORQUE ESSA FOI A NOTÍCIA!
Aí alguém dirá: "Ah, o ministro que seja mais cuidadoso ao dar uma resposta…" Bem, é preciso, então, que nós, os jornalistas, decidamos se estamos interessados na notícia como FATO ou se estamos interessados em tornar fato o que julgamos ser um deslize — que, no caso, nem deslize é.
Incômodo
Se querem saber, isso é o que mais me incomoda nesta profissão, que é também a minha. Há uma espécie de paixão pelo viés negativo da realidade sob o pretexto de se fazer jornalismo crítico ou mesmo imparcial. As duas qualidades são absolutamente desejáveis na profissão, desde que elas não se tornem maneirismos, cacoetes, desvios de finalidade, um vício. E todos estão sujeitos a distorções nessa natureza.
Em post na madrugada desta quinta, chamei a atenção para uma óbvia distorção de uma fala de Lula em Belo Horizonte. Sim, ele falou o que considero bobagem às pencas, mas, quando afirma que não pode "respeitar a decisão da Justiça" que o condenou, está, evidentemente, deixando claro que não tem apreço pela sentença, que não a considera justa, correta, apreciável, digna de louvor, de méritos, de merecimento. Ora, alguém esperava que dissesse o contrário?
Ocorre que o verbo "respeitar", especialmente quando a Justiça está em debate, também tem outro sentido: subordinar-se a, obedecer, cumprir o estabelecido. E, por óbvio, não foi essa a fala do petista. Até porque, em passado recente, o mesmo Lula disse não "respeitar" a decisão que o condenou e, no dia seguinte, entregou seu passaporte à Polícia Federal porque essa havia sido a decisão — bem pouco respeitável, diga-se — de um juiz.
Deixo aqui um convite à reflexão dos leitores e dos meus colegas. A cada vez que se vai escrever um texto ou falar no rádio ou na TV, em veículos da imprensa comprometida com os fatos, é preciso que o jornalista diga a si mesmo: "Não estou no terreno do vale-tudo das redes sociais, onde a potência de uma mensagem se mede pelo número de 'likes' ou curtidas, de sorte que, se eu der destaque o deslize, real ou forjado, atingirei um maior número de pessoas".
Volto a Jungmann: ele, com efeito, afirmou o que disseram que afirmou. Da forma como se noticiou a coisa, estamos diante de uma "fake news" — a mais perigosa e nefasta delas: afinal, não se pode dizer que seja uma mentira factual, mas se trata, indubitavelmente, de uma mentira conceitual e moral.