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Reinaldo Azevedo

A Parte e O Todo – Um dia difícil diz que dias difíceis virão. Mas eles podem ser batidos

Reinaldo Azevedo

23/02/2017 22h14

Anjelica Huston (Gretta) e Donal McCann (Gabriel) em "Os Vivos e Os Mortos"
Que dia! Que noite! Acabei num hospital, em Santo André, para onde tive de levar minha mãe, vítima de uma crise grave de ansiedade por conta das barbaridades que fizeram em sua casa. Leia as notas que postei ontem quem não sabe do que falo. Não lhe roubaram nada; nada que os fizesse mais ricos: mas ela ficou mais pobre de seus afetos, de seus cuidados, de sua vidinha.

Lembro-me do mais belo filme de John Huston: Os Vivos e Os Mortos. Talvez seja o meu predileto em qualquer seleção, baseado num dos contos dos Dublinenses, de Joyce (magníficos; Ulisses, perdão!, é um porre). Fico muito comovido sempre que o vejo. Numa das seqüências mais marcantes, enquanto se cantam antigas canções da Irlanda, numa noite de Natal, a câmera vai passeando pelos quartos das tias velhas, já quase se despedindo da vida: objetos, móveis antigos, pequenas delicadezas que resumem uma existência, doces obsessões, essas porcarias sentimentais de que somos todos feitos, sem as quais não construímos a nossa individualidade, sem as quais não nos reconhecemos como seres ímpares. Sem as quais somos só "companheiros". Um mundo aquecido de individualidades em meio ao gelo.

Romperam essa sacralidade, botaram tudo ao chão, esmagaram o bolo do café da tarde, espalharam os santinhos de massa vagabunda pela casa, deixaram jogadas no corredor as contas de um rosário antigo, fraudaram cada detalhe em que fixamos cotidianamente os olhos para nos certificar de que o mundo ainda está ali, justificando, assim, a nossa vida. E tudo por nada. Ela tremia muito. Não era medo, mas estupefação; indignação diante da gratuidade; catatonia.

Depois voltei para casa e fiz a leitura crítica que segue dos três jornais, selecionando o que me pareceu mais importante. Anotem aí, meninos. Vêm dias duros, muito duros, pela frente. Prepara-se um clima de guerra eleitoral, de confronto, e há muita gente que só admite um resultado. A ética do cachorro louco começa a se espalhar. Estamos na fase em que os Ernst Röhm (pesquisar a repeito) ainda presta seus serviços.

Dá para perceber perfeitamente de onde vem a força eleitoral de Lula, mas também as suas fragilidades começam a ficar evidentes. E é, sim, possível batê-lo nas urnas desde que as oposições tenham clareza de que é preciso abatê-lo politicamente. Uma coisa deriva da outra. Com tudo o que ele "transferiu" de renda, a verdade é que o seu ainda é um governo especialmente benevolente com uma minoria, numa equação que não tem sustentação no médio prazo.

Não estou fazendo juízo de valor. Atenho-me aos fatos. Um terço jamais votará nele. Um terço jamais deixará de votar nele. O terço flutuante, pendular, atravessa todas as classes. Fiquem certos de que há muitos pobres que não caem na sua conversa; fiquem certos de que há muita "minoria" que não quer a sua tutela. Leia no Estadão: uma estudante negra cobrou de Serra, no trem, o fim das cotas. Ela quer "direitos iguais para todos".

A classe média começa a cair fora. Mas precisa, para tanto, sentir que tem uma opção. O PT, com efeito, tem um, vamos dizer, "setor de inteligência" que os outros partidos não têm. O que não significa que não cometa erros. Vejam numa nota abaixo uma fala escandalosa de Marco Aurélio Garcia, que era assessor de Lula para assuntos internacionais, e agora decidiu se meter nos nacionais com a mesma habilidade. Diz, com todas as letras, que não tem constrangimento nenhum em ter mensaleiros no seu palanque. Para este notório pensador da esquerda latino-americana, "constrangimento é não ter voto". Ou, lendo pelo valor de face: quem tem voto faz o que bem entende. É o lema do segundo mandato.

A oposição tem um vastíssimo arsenal a seu dispor se quiser ousar e fazer a coisa certa. E se deve começar pelos mensaleiros que não constrangem nem Lula nem Marco Aurélio Garcia e chegar ao destino de outros implicados nos escândalos, como Marcos Valério e José Dirceu. A população, e não apenas aquela elite que lê jornal, tem o direito de saber como vivem hoje aqueles senhores que abalaram a República. O dito publicitário mudou-se para uma casa de R$ 10 milhões — R$ 3 milhões só para o sistema de ar condicionado. Dirceu é um "executivo" que negocia com governos, agora, diz ele, na iniciativa privada. Também dá para passar pelo patrimônio de Lula, convertido num rentista muito bem sucedido. Fazer uma boa leitura não mais do que jornalística do patrimônio da família Lula da Silva é uma obrigação ética das oposições.

É perfeitamente possível bater Lula nas urnas, sempre tendo em mente o que isso vai significar. E não será pouca coisa. Eles simplesmente não admitem a possibilidade de ser apeados democraticamente do poder. Como são cultores do duplipensar orwelliano, lidam tão bem com as regras da democracia quanto com a ausência de regras da truculência. Uma divisão está se formando no país, muito clara, nítida, insofismável. Ela distingue os que adotam o Estado de Direito como elemento inegociável e os que vêem nele não mais do que um valor instrumental: é usado quando possível; se preciso, que se resolva na porrada. Uma figura aparentemente pouco dolosa como Guido Mantega é exemplo do que falo: ele não se vexa em se comportar como cabo eleitoral mesmo sendo, em tese ao menos, o condutor da economia. Márcio Thomaz Bastos, que encarna a Justiça no Executivo, faz a mesma coisa.

Na surdina, a ordem, a determinação, a decisão é perseguir jornalistas e colunistas considerados indesejáveis com processos judiciais que só não deixam Kafka no chinelo porque toscos, patéticos em sua argumentação, descarados em sua adesão a uma visão totalitária de mundo. Mas aporrinham as pessoas, custa-lhes tempo, custa-lhes dinheiro, custa-lhes a atualização forçada de algo que deveria ser natural como o ar que respiramos: a liberdade de expressar idéias, de opinar, de analisar, de debater, de dissentir — até mesmo de fazer uma piada.

Não, Lula não é um esquerdista vegetariano (ver abaixo), conforme diz Montaner, um dos autores do Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. Ele é até bem carnívoro. O liberalismo brasileiro, reduzido à sua mais baixa expressão na operação do mercado financeiro, louva-lhe as responsabilidades porque, de fato, louva-lhe as facilidades. Mas as instituições visivelmente se deterioram, e a impunidade vai virando o signo destes tempos. Quanto mais mansas forem as oposições, mais parecerão comprometidas com esse estado — e, pois, ficarão em desvantagem porque não têm a máquina nem contam com a mística do "presidente operário" — embora milionário em breve.

Comecei a falar sobre a invasão da casa da minha mãe, lembrei o filme de Huston e termino cobrando uma reflexão sobre estes tempos. É preciso saber de que lado se está da linha que separa a democracia de todas as formas não-democráticas de governo. Sugiro que prestem atenção à fala da ministra Matilde Ribeiro (ver abaixo). Ela faz pouco da Constituição ao dizer que esta assegura igualdades que não se cumprem. Então ela quer o estatuto das raças para ver se, com um pouco mais de desigualdade, ela consegue fazer justiça. É a sua versão da famosa expressão de Márcio Thomaz Bastos: "acomodação tática da Constituição". E à frivolidade de mercado, tão encantada com Lula, um recado: um dia eles chegam aí. Basta que uma crise lhes cobre um bode expiatório.

Quem ainda não viu Os Vivos e Os Mortos tem de ir correndo à locadora. O mundo pode ser muito civilizado, ainda que um pouco triste. Mas assim somos todos nós. Embora seja preciso lutar com a faca nos dentes. Recolhi os santos de minha mãe. Guardei as contas para refazer seu rosário.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.