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Reinaldo Azevedo

Antes de Fachin estar envolto por essa colônia fúngica da extrema-direita de Internet, ministro pregou o fim da propriedade privada no campo

Reinaldo Azevedo

26/06/2018 16h30

Ah, Edson Fachin, este que logo terá seu retrato brandido em manifestações da extrema-direita como exemplo da Justiça das ruas, tem historia, não é mesmo? O hoje herói dos fascistoides já foi uma joia rara do esquerdismo. Chegou ao tribunal sob as bênçãos do MST — um aparelho de burocratas da reforma agrária que se querem revolucionários, praticando crimes aqui e ali —  e da JBS, que, a despeito de sua competência técnica (e esta é inegável e tem de ser preservada, mas, entendo, sob nova direção) era comandada por pessoas que se especializaram também em ações criminosas. Seu comandante máximo, aquele que era a sua cara e também a sua face publicitária, o senhor Joesley Batista, confessou nada menos de 245 crimes.

Fachin tinha o apoio do MST porque era um militante histórico da relativização da propriedade privada no campo. Para ele, a tal "função social da propriedade" queria dizer que a titularidade de uma área estava sujeita às vicissitudes da luta social. Se, num dado momento, um determinado grupo reivindicasse algum espaço em nome do interesse coletivo, esse alegado interesse teria prevalência sobre a legalidade da posse de quem estava sendo esbulhado. Escreveu textos em que isso fica claro.

Foi indicado pela dita "presidenta" para uma vaga no Supremo em razão dessas vinculações, mas não só. Fachin também atendia a uma outra tara do PT. Era um crítico da "tradicional família brasileira" — aquela, vocês sabem, com papai, mamãe e filhinhos. Há companheiros revolucionários que acham que aí está a essência das iniquidades sociais brasileira. O homem se tornou um teórico e um militante da "plurifamília".

A resistência a seu nome foi grande no Senado. Mas Dilma fez algo que o Fachin de hoje certamente considera horrível: distribuiu cargos no segundo e terceiro escalões para alguns peemedebistas e conseguiu o apoio ao homem que considerava os proprietários rurais "espíritos caiados pelo ódio e pela violência". Era um trocadilho com o sobrenome de Ronaldo Caiado, então líder da União Democrática Ruralista. Hoje em dia, Caiado deve achar que Fachin deveria ser chamado de "Cesare Beccaria".

Se vocês querem saber o que este gênio pensava sobre reforma agrária e propriedade rural, podem ler as suas próprias palavras aqui, entre as páginas 302 e 309. Mas faço uma síntese:

Sobre produtores rurais
"Hoje, de qualquer modo, é fundamental despertar ainda mais para as questões básicas que se colocam na perspectiva da Constituinte, até para tentar obstruir retrocessos como o que se avizinha, decorrente dos "lobbies" engendrados no meio rural por grupos e pessoas de espíritos caiados pelo ódio e pela violência.Mais ainda: tal postura também se mostra necessária para denunciar o clientelismo de candidatos e, inclusive, de partidos que até estiveram na resistência democrática."

Propriedade é um empecilho
"O instituto da propriedade foi e continuará sendo ponto nevrálgico das discussões sobre as questões fundamentais do País. Por isso, o debate sobre a questão agrária na perspectiva de uma Constituinte suscita alguns tópicos para análise. Não obstante se apresentar uma proposta de Constituinte de cunho conservador, mitigada em sua soberania e liberdade, seguem adiante algumas indicações para a discussão. Tais indicações correspondem a poucos, dentre tantos outros itens, certamente mais relevantes."

Só a função da propriedade é pouco
"De um conceito privatista, a Constituição em vigor chegou à função social aplicada ao direito de propriedade rural. E um hibridismo insuficiente, porque fica a meio termo entre a propriedade como direito e a propriedade como função social. Para avançar, parece necessário entender que a propriedade é uma função social. Isso poderá corresponder à efetiva supremacia dos interesses públicos e sociais sobre os interesses privados, gerando inúmeras consequências, inclusive além da questão agrária."

Confisco de terra sem indenização
"Se, ao invés de a propriedade rural ter uma função social, ela se tornar função social, concluir-se-á que não há direito de propriedade sem o cumprimento dos requisitos da função social. Essa configuração poderia permitir a um Estado democrático arrecadar todos os imóveis rurais que sejam enquadráveis nessa categoria, sem indenização. Se não há direito, logo, não há o que indenizar."

Desapropriação de terras produtivas
"Aqueles imóveis que estiverem produzindo, ao inverso, estariam sujeitos à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, fixando-se-lhes indenização cujo teto máximo, em qualquer hipótese, fosse o valor declarado pelo proprietário para fins de ITR -Imposto Territorial Rural.
 Dessa forma, todos os imóveis rurais no país, agricultados ou não, estariam sujeitos à reforma agrária."

Limite para a propriedade rural
"Consentânea com as demais medidas, a fixação de módulo máximo de propriedade rural deve atingir tanto nacionais quanto estrangeiras (pessoas físicas ou jurídicas), terras públicas ou privadas. Sua previsão deve ser constitucional."

Justiça de exceção:
"Se é essa a Justiça necessária, é preciso, desde logo, relativizar seus efeitos e sua força, para corrigir injustiças, face a uma limitação que lhe é ínsita: ao Poder Judiciário, o mundo dos fatos é o mundo dos autos, ou seja, a realidade é o universo processual. Esse "fechar de olhos" para o mundo a que se submete, com raras exceções, o magistrado, faz com que ao Poder Judiciário reste aplicar ao trabalhadora lei, via de regra, confeccionada direta ou indiretamente pelo patrão. O resultado é sobejamente conhecido."

Fachin, o socialista e a mudança do regime:
"A miséria e a consciência contemporâneas exigem mudanças reais na estrutura econômica. Qualquer iniciativa que não considere como pressuposto alterações substanciais no contexto histórico, político e econômico vigente, ainda que possa representar um famoso "passo a frente", estará condenada, mais cedo ou mais tarde, a compelir os segmentos sociais envolvidos a dar dois passos atrás. E tais mudanças devem ser da essência do "regime" e, não, perfunctórias."

Desigualdade perante a lei, com luta de classes:
"Em verdade, a efetividade da Justiça Agrária deve procurar também resolver um clássico problema posto sempre como um dilema diante do direito: a igualdade. O princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, consagrando a isonomia no texto constitucional, cedeu terreno à arguição da legitimidade da própria lei, vale dizer: não basta ser tratado igualmente diante de uma lei que não considerou as desigualdades sociais e que não abrigou princípios protetores das classes menos privilegiadas"

Constituinte reacionária
"Convocados a legislar em causa própria, os futuros constituintes serão, em verdade, os futuros membros do Congresso Nacional. Cuidarão, portanto, de tecer o novo estatuto constitucional do qual não viverão apartados. Ou seja: teremos um Congresso constituinte, fórmula muito distante das reais necessidades e reivindicações da grande maioria da população."

Foi coisa como essa que levou o valente ao Supremo — além, claro!, de seu propósito de destruir a tal "tradicional família brasileira". Hoje, ele se concentra em, dizem, combater a corrupção. Vamos ver o que fará quando temas relativos à propriedade privada e à organização da família chegarem à corte. Vamos ver se vai retirar do baú o Fachin bolorento e ou se dará curso a este novo Fachin, envolto na colônia fúngica da direita reacionária e antiliberal.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.