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Reinaldo Azevedo

Bolsonaro, os portugueses na África e um tal Diogo Cão. Ou: uma das faces mais perversas da mentira está no aviltamento da verdade

Reinaldo Azevedo

31/07/2018 17h06

Estátua de Diogo Cão em Luanda, Angola.

Um dos problemas de Jair Bolsonaro é ter aprendido rudimentos de quase tudo que ofende o senso comum. É uma estratégia: ser politicamente incorreto para tentar romper um suposto falso consenso. Aí os ignorantes como ele próprio, ou mais agressivos, dizem: "É isso mesmo! Finalmente alguém que fala a verdade!"

Vamos ver. Negros escravizavam negros e os vendiam aos traficantes de escravos? Sim, isso é verdade. Alguém lhe contou isso, e ele considerou em sua máquina de dizer impropérios: "Taí um bom argumento contra as cotas". Assim, seu cérebro, digamos, maroto deve lhe dizer: "Se cotas existem para reparar as injustiças históricas, então mostre que os verdadeiros culpados pela escravidão são os próprios negros".

Como lhe sopraram ao ouvido a suposta "verdade sufocada" sobre a escravidão e como ele não teve tempo ou disposição para estudar ou ler a respeito, então opta pelas próprias formulações, dando azo à história criativa. Mandou ver no Roda Viva: "Os portugueses nem pisaram na África". Ai, ai… É o que nos dizem, por exemplo, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, para ficar nos países do continente que têm o português como língua oficial. Há ainda a Guiné Equatorial, onde o idioma divide a primazia com o espanhol e o francês.

Ademais, se importa saber — e importa por amor aos fatos — que negros também traficavam negros como os brancos que levavam escravos às Américas, em que isso altera o fato de que essa atividade mercantil estava sob o comando de colonizadores europeus? Mas, de novo, ele deve se lembrar de algum ruído. É possível que lhe tenham dito: "Não podemos ver a escravidão havida com os olhos dos valores de hoje". Sim, é verdade! Não podemos. Mas isso muda o horror atemporal da escravidão ou altera as cicatrizes — ou ainda feridas — que deixou na cultura e na sociedade brasileira?

Também sou radicalmente contra cotas de qualquer natureza —  e incluo no meu "não" as chamadas cotas sociais — na forma como a política vem sendo aplicada e ampliada no Brasil. Precisamos, isto sim, é qualificar a escola pública, que é aquela frequentada pelos pobres, sejam brancos, pardos ou negros, para ficar na classificação do IBGE. Os que, de algum modo, estão à margem de uma competição entre iguais têm de ser qualificados com cursos preparatórios para disputar as melhores vagas oferecidas pelo setor público ou privado. Essa é a minha escolha. Aplicar no país um critério racialista não apenas deixa de resolver o problema, entendo eu, como estimula uma divisão que não interessa ao país. Parte da recepção positiva que tem o discurso de ódio levado adiante por Bolsonaro deriva do fato de que amplas camadas veem as cotas como um privilégio inaceitável. O branco pobre se pergunta, afinal, que responsabilidade teve na escravidão. Acaba se criando uma dissensão entre os excluídos.

Mais ainda: se é legítimo aplicar política de cotas nas universidades e no serviço público, por que, então, não se deveria fazer o mesmo no Congresso, no Judiciário, nos tribunais superiores? Seria o caminho da conflagração sem resposta virtuosa. Reitero: falo em cotas de qualquer natureza. Elas são a resposta simples e errada para um problema difícil.

A fala de Bolsonaro é especialmente perversa porque ele acaba distorcendo e rebaixando o bom debate. Quando se manifesta, a esquerda mais desinformada e brucutu assume ares de pregação civilizatória. E, por óbvio, ele sempre poderá dizer: "Ah, mas eu não sou um historiador nem um sociólogo…" É verdade! Ocorre que, tudo indica, nessa área, ele é o seu próprio "Posto Ipiranga", não é mesmo? Ou, então, a sua fonte de revisão histórica são os seus militantes entusiasmados, que o próprio general Hamilton Mourão admitiu serem "um pouco boçais".

Deus do céu! Os portugueses nem pisaram na África? Os professores de Bolsonaro precisam lhe contar, por exemplo, quem foi Diogo Cão, o homem dos "padrões", cuja saga mereceu um dos mais belos poemas de "Mensagem", de Fernando Pessoa. Empreendeu ao menos duas expedições espetaculares, chegando ao rio Zaire e depois à Serra Parda. Foi ele que deu início aos contatos com o Reino do Congo. Foi Diogo Cão, não Cristiano Ronaldo, quem começou com essa história de "eu estou aqui" — no caso dele, "estive". Deixava inscrições na pedra, em português, latim e árabe, registrando a sua passagem.

"Ah, Reinaldo Azevedo, que diferença isso faz para governar o Brasil?" Eu até poderia responder "nenhuma!" se um bolsonarista me dissesse, então, o que faz a diferença.

É entender economia?

Ele não entende.

É saber história?

Ele não sabe.

É ser um especialista em segurança pública?

Ele só diz bobagens nessa área; perguntem a especialistas, inclusive militares, realmente qualificados e sem qualquer simpatia pelas esquerdas.

É ter a chance de constituir uma base sólida no Congresso para fazer reformas?

Ele é, a rigor, o mais isolado dos candidatos.

Então qual é, com efeito, o seu segredo? Em parte, ele o expôs, e acabou tendo a colaboração involuntária de alguns de seus entrevistadores no Roda Viva. Bolsonaro veste a pele do suposto homem comum, que seria, como ele, ignorante em quase tudo, mas muito bem-intencionado. O que essa formulação malandra não deixa claro é que o tal "homem comum" que ele encarnaria não é candidato à Presidência da República, não manipula uma máquina de impropérios muito bem-azeitada na Internet nem tem três filhos políticos, que, a exemplo dele próprio, até agora não explicaram, por atos, não por impropérios, por que são políticos.

O que eles também fazem, a exemplo do pai, é produzir impropérios e ignorâncias.

Uma das faces mais perversas da mentira é o aviltamento da verdade.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.