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Reinaldo Azevedo

Direita e esquerda fascistoides repudiam a imprensa que as faz ser notícia. Ou um caso do passado: o precedente Caetano Veloso

Reinaldo Azevedo

05/02/2018 16h45

Vejam este vídeo. Volto em seguida:

https://youtu.be/u7LGo3NlLPE

Aqui e ali, aparecem textos meio choramingas reclamando da intolerância de candidatos e movimentos com a imprensa.

Aqui e mundo democrático afora, o remédio contra fascistas de direita e de esquerda é de espantosa simplicidade e só não é aplicado porque franjas desses grupos intolerantes acabam se infiltrando nas próprias redações — ou o que quer seja o sucedâneo de uma "redação".

Esses radicais de meia-tigela usam uma tática que nada tem de novo. No Brasil, seu inaugurador foi Caetano Veloso. Eis um cara realmente vanguardista.

Nota já à partida: Caetano é um letrista de primeiro time, melhor do que Chico Buarque, segundo os meus critérios e meu gosto literário. Às vezes, consegue chegar bem perto da poesia. Também é um bom músico e, até agora, canta cada vez melhor. Mas ele sempre foi candidato a pensador.

E não é que o danado até que pensava bem, com originalidade — no sentido de que as ideias que articulava e tornava públicas não eram um pastiche de vulgaridades, clichês e facilidades de grupos organizados!? Nesse particular, foi piorando, piorando, piorando…. Aí não tem jeito: quando o sujeito começa a se conformar com a facilidade e a ser confortado com ela, falar bobagem pode se tornar um vício.

Nos dias presentes, Caetano é um bobagem-dependente, um adicto. A gente vê que ele aprende até com Marcelo Freixo e Randolfe Rodrigues. Já declarou, por exemplo, seu voto em Ciro Gomes. É bem mais burro do que votar no PT. O cara que escreveu "Verdade Tropical" não poderia se contentar com uma versão rebaixada do nacional-desenvolvimentismo, temperado pela retórica truculenta.. Mas assim são as coisas…

Não me perdi, não. Puxei um fio longo. Vou lhe dar o devido sentido. Faz 40 anos ao menos que Caetano instrumentaliza, com raro senso de marketing, uma relação de amor e ódio com a imprensa.

Voltemos o vídeo. O cantor e compositor era o entrevistado de um programa que tinha, então, um prestígio imenso junto à "intelligentsia", o "Vox Populi", da TV Cultura. O jornalista e crítico Geraldo Mayrink lhe dirigiu uma pergunta provocativa, sim, mas absolutamente afinada com o debate daquele 1978, com os primeiros passos da redemocratização em curso, mas com a violência política ainda a ameaçar o pensamento livre.  Vladimir Herzog tinha sido assassinado no Doi-Codi em 1975; pouco depois, foi a vez de Manoel Fiel Filho. No ano seguinte ao destampatório de Caetano, o líder operário Santo Dias levou um tiro de um policial durante um piquete e morreu. Conflitos políticos — para ser genérico — ainda podiam ser resolvidos, como se vê, na base da bala. Quem fazia política corria um pouco mais de risco do que os que os que lideravam a vanguarda musical, né, Caetano?

Eu sei bem porque, à época, eu era da turma que gostava de Caetano, o que não me rendia temor nenhum. Medo mesmo eu tinha era quando participava de reuniões clandestinas… O máximo de risco que se corria ao ser um "caetanista" era ser considerado meio esquisitão por aquele seu tio do churrasco que sabe tudo sobre todos os assuntos, rsrs…

O fato inegável é que Caetano é talentoso na sua área e tem o faro afinado para a polêmica. Assim é ainda hoje. Sua relação com a imprensa era e é como apontava Mayrink — e não que eu concordasse com os critérios estéticos do jornalista. No que havia ali de querela artística propriamente, eu estava, aos 17 anos, com Caetano. Se fôssemos atualizar a pendenga, estaria ainda hoje.

Mas notem os termos da reação do compositor. Ele desqualifica quem faz a pergunta. Chama de "burro" sem dizer exatamente por quê. Manda bala:
"Eu tenho noção do que eu faço. Muito diferente de você e seus colegas, que aceitam um emprego que não podem, que não têm competência para exercer. Vocês aceitam esse emprego apenas para ter algum prestígio e ganhar algum dinheiro (…)".

E esse era Caetano, numa eterna relação de amor e ódio com a imprensa. Com o tempo, seus admiradores ganharam postos de prestígio na imprensa, e as críticas negativas a seu trabalho foram desaparecendo, até sumir. Ainda hoje, discordar de Caetano, nem que seja em política, comporta algum risco. Sabem como é… Ele sempre pode achar que você meio burro. Já tive alguns embates com ele via jornais. Pegou mais leve comigo do que eu com ele.

Se ainda não perceberam aonde quero chegar: Caetano instrumentalizou, ao longo da vida, a sua repulsa à imprensa  — ao menos ao jornalismo ou aos jornalistas dos quais não gostava —, mas sempre dependeu dela para referendar o seu trabalho, ainda que a crítica fosse negativa, o que só servia para alimentar a máquina de disparar desaforos, que rendia novas tertúlias…

De volta aos fascistas de esquerda e de direita
Os fascistas de esquerda e de direita que hoje hostilizam a imprensa profissional só têm alguma importância porque viram notícia na… imprensa profissional.  Peguem o "bolsonarismo" como exemplo, esse falso movimento. Se o "mito" vencer a eleição, o que não creio que vá acontecer, haverá o robustecimento de grupelhos fascistoides a dizer ignorâncias sobre qualquer assunto. Se nem chegar ao segundo turno, a coisa reflui, e a turma volta para os bolsões.

Bolsonaro trata a imprensa a pontapés. No dia em que for ignorado, a valentia acaba. "Ah, Reinaldo, com as redes sociais, ela não tem mais importância". Mentira! Com efeito, os fanáticos fascistoides de direita e de esquerda independem do que é publicado na 'mídia tradicional'. Aliás, usam o que o jornalismo profissional veicula para desacreditar a verdade. Fora, no entanto, do fanatismo, quem dá corpo e relevância a essas "líderes" e grupos é a imprensa, sim. Quem tem ao menos 1,75 neurônio — com arredondamento, chega-se a dois — recorre a veículos de comunicação não-militantes para aferir o que se divulga nas redes sociais.

Caetano deveria ser considerado a musa — inexiste a palavra "muso" — desses políticos e movimentos que hostilizam a mídia. Ninguém conseguiu, com igual maestria, difamar aquilo que o fazia e faz especialmente forte.

Sim, hoje em dia, existem as redes sociais. Ocorre que as pessoas sabem que elas próprias são livres para lançar a bobagem que lhes der na telha. E têm a noção que os tais grupos organizados fazem a mesma coisa. Para que um político ou um movimento sejam considerados relevantes, é preciso que haja o endosso da tal "mídia tradicional", ainda que com viés crítico, que eles repudiam.

É fácil calar um fascista de esquerda ou de direita ou devolvê-lo à caixinha, acreditem! Basta que a imprensa que eles tanto odeiam os ignore.

"Mas e quando eles são notícia?"

Uma questão: será que são mesmo, ou somos nós a torná-los notícia? No dia em que se limitarem a exercícios masturbatórios de autoadoração, terão morrido. Aliás, essa onda não sobreviverá a 2018. Querem apostar? Na verdade, já começou a morrer. E só por isso cresce a virulência retórica. Na ausência do que dizer, grita-se cada vez mais alto.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.