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Reinaldo Azevedo

Janot se acha Hamlet. É... E de como, diz Lula, o doutor teria tomado no cobre se formal fosse

Reinaldo Azevedo

19/09/2017 01h52

Rodrigo Janot não compareceu à posse de Raquel Dodge. Teria considerado uma descortesia ter sido convidado apenas por e-mail. Bem, tanto ele fez para que ela não chegasse lá que o convite eletrônico já é expressão de uma generosidade da nova titular. Por que não sirvo para ser homem público? Por coisas assim: em lugar de Raquel, nem essa tal mensagem eu teria enviado. E, se querem saber, foi muito bom o doutor ter-se ausentado porque isso o levou a emitir a nota mais patética jamais saída daquela incansável lavra de impropriedades. Vocês podem ler a íntegra neste blog.

Não fossem as articulações malévolas de Janot para derrubar um presidente da República; não fosse a clara admissão de que faz política — e sua nota reflete isso de maneira berrante e aberrante; não fosse a escolha deliberada pela demagogia politiqueira, e eu seria condescendente com ele, destacando, sim, a sua ignorância, mas sem supor que há algo de podre no quintal de seu cérebro.

Só um misto de ignorância arrogante e populismo vulgar explica que tenha aberto a mensagem a seus pares citando Hamlet, a personagem mais intensamente idiota que Shakespeare construiu — vá lá: ele tinha uma diferença em relação a Janot; o tonto era mesmo sincero nos seus desejos homicidas de Justiça e seu, digamos, solipsismo, seu extremo subjetivismo, derivava do excesso de imaginação, não da falta dela. A síntese de Polônio sobre o príncipe, tantas vezes citada, explica esse estado: "Loucura, sim, mas tem método". A propósito: coitado do Polônio! Foi um dos homens reais (na peça) que acabaram morrendo porque o jovem porra-louca falava com um espectro.

Tudo o que um procurador-geral da República não pode fazer é ter em Hamlet um herói. Terá o ex-procurador percebido que não há circunstância objetiva que evidencie que Cláudio, seu tio, era mesmo o assassino de seu pai. Terá Janot percebido em algum momento que era o espectro, o fantasma  — vale dizer: as projeções mentais do próprio Hamlet, seus rancores, sua impotência para entender o mundo real, seu inconformismo, seu ressentimento — que o levavam não só a ser judicioso sobre a morte do pai, mas também a provocar desastres entre os vivos? O fantasma do próprio também lhe indicava o caminho de uma narrativa que, — a exemplo do que ocorre com boa parte dos alienados — tinha lógica interna.

E é a alguém como Hamlet que Janot pretende se associar, simbolizando, então, o seu amor incansável pela Justiça. Será que Janot assistiu alguma vez a uma representação? Terá tido o cuidado de ler o texto ao menos? Não creio! Na nova denúncia contra Temer, ele não conseguiu acertar nem o nome de um ex-presidente de Furnas, que teria sido condescendente com desmandos do PMDB. O sobrenome do homem é "Conde", grafado corretamente apenas uma vez, para nada menos do que sete "Conte(s)".

Então era isto? Então era mesmo um banho sangue o que queria Janot? Ele deve ter se esquecido de que, ao fim da tragédia, sobram muitos corpos pelo caminho, inclusive o do próprio príncipe, e chega ao fim o reinado dos Hamlet. Como Janot, o maluquete também achava que havia um excesso de "larápios egoístas e escroques ousados" na Dinamarca. Na hipótese de ser verdade, poderia ter seguido as regras do jogo, vencendo-os. Não! O rapazola lá e o coroa aqui preferiram o salseiro, o espalhafato, a intriga, as ações insidiosas. E, não sei, não, tudo indica que, se todos falarem o que sabem, mesmo menos esbelto, mesmo mais velho, mesmo mais sem graça, mesmo mais sem imaginação, Janot também termina varado pela espada — no caso, da lei. Até as pedras sabem que ele está hoje nas mãos de Marcelo Miller, que já pediu o seu testemunho em ação judicial.

Janot não se envergonhou nem mesmo de deixar gravado, em sua última manifestação como procurador-geral, o mais rasgado auto-elogio. Ele está mesmo convencido de que nunca houve um procurador-geral da República como ele. Sobre seu próprio trabalho, considera:
"O MPF de 2017 é diferente do MPF de 2013. Mas o norte e os desafios são os mesmos: a luta pelo Direito e pela Justiça, de forma incansável, de olhos abertos e prontidão constante".

Evidenciando que pode ainda não ter desistido de uma candidatura ao governo de Minas, escreve:
"O Brasil é nosso! Precisamos acreditar nessa ideia e trabalhar incessantemente para retomar os rumos deste país, colocando-o a serviço de todos os brasileiros, e não apenas da parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam vistosos cargos em nossa República."

Cumpre perguntar: quem são os proprietários do Brasil por trás desse "nosso"? Quem fez de Janot, que foi indicado procurador-geral por Lula e depois renovado no cargo por Dilma, um representante do povo? Em nome de qual coletividade ele fala?

Mas convenham também: sua carta mixuruca não é muito melhor do que suas denúncias, a não ser num aspecto: em sua mensagem, ele acusa crimes, morais ao menos, sem apontar os autores. Em suas denúncias, costuma apontar os autores, sem deixar claro que crime cometeram.

De resto, Janot é soberbo e deselegante. Lembra ter ficado em primeiro na eleição promovido pela ANPR (Associação Nacional de Procuradores da República). Raquel Dodge, sua sucessora, como se sabe, ficou em segundo. Dizer o quê? Com um pouco de vergonha em sua cara institucional, este senhor nem mesmo citaria tal escrutínio, que é uma usurpação. A eleição nem prevista na Constituição está. De resto, Janot pode se livrar de tudo, mas não de uma fala histórica de Lula, numa conversa com o advogado Sigmaringa Seixas. O chefão petista cobrava então que Sigmaringa fizesse alguma gestão junto ao procurador-geral, que ele julgava estar perseguindo o PT e a ele próprio. O interlocutor diz ao ex-presidente que não pode abordar Janot na forma sugerida; seria preciso ser mais formal. E Lula fala, então, para a história, sem saber que estava sendo gravado — conversa que Sérgio Moro tornou pública:

"Esse cara, se fosse formal, não seria procurador-geral da República; teria tomado no cu; teria ficado em terceiro lugar (…). Quando eles precisam, não tem formalidade; quando a gente precisa; é cheio de formalidade". Para ouvir, clique aqui.

Havia, sem dúvida, algo de podre na Dinamarca do nosso Hamlet de cabelos encanecidos.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.