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Reinaldo Azevedo

Jurisprudência do STF deixa claro que imunidade parlamentar não abriga o que fez Bolsonaro

Reinaldo Azevedo

16/08/2017 16h34

Jair Bolsonaro: ele primeiro atira contra tudo o que se move; depois, tenta entender por que atirou. E nunca chega lá…

Oh, eis que surgem os especialistas dos próprios ódios e dos próprios preconceitos para tentar salvar a barra do deputado Jair Bolsonaro (RJ), que, no momento, nem partido certo tem. Bolsonaro é aquele senhor que pretende se candidatar à Presidência. Não se conhece uma linha de seu pensamento econômico que o diferencie, deixem-me ver, do PCO. Afinal, até o PT privatiza — se deixar, aliás, os companheiros privatizam o país, desde que seja a um empresário amigo que, depois, colabore com o partido… Não se conhece uma linha de seu pensamento político que o diferencie de um líder fascistoide irresponsável. Basta ver a determinação dele e de seu exército virtual na Internet em mimetizar toda as delinquências praticadas, por exemplo, por Donald Trump. Sim, ainda falarei do paspalho do Norte, que, tenho fé, não concluirá o mandato. Adiante.

Todos conhecem a história. A detestável — por aquilo que pensa e faz, não por ser mulher ou bonita ou feia — deputada Maria do Rosário (PT-RS) chamou o deputado, que concedia uma entrevista à RedeTV!, de "estuprador!". Isso aconteceu em 2003. Uma pessoa que apostasse na civilidade democrática a teria levado ao Conselho de Ética. Não Bolsonaro! Ele preferiu dar outra a resposta, a saber: "Eu jamais iria estuprar você porque você não merece." Ela reage como Maria do Rosário: "Olhe eu que lhe dou uma bofetada!" O valentão estufa o peito pra cima da adversária, intimidação física do macho contra a fêmea malcriada e responde: "Dá, que eu lhe dou outra". E arremata: "Vagabunda!"

Desnecessário dizer que, na nossa língua e na nossa cultura, "vagabunda" não é só o feminino de "vagabundo".  A palavra é sinônimo de "prostituta". Se a gente analisar a resposta deste senhor, chegando à sua psicologia, à luz do que sugerem as palavras, não se chegará a um lugar bonito.

Eis o vídeo edificante, para quem não conhece:

https://www.youtube.com/watch?v=LD8-b4wvIjc

Onze anos depois, em 9 de dezembro de 2014, Maria do Rosário decidiu deixar o plenário quando ele discursava. A questão, no país do Dia da Marmota, era a mesma de antes: a inimputabilidade dos menores de 18 anos. Quando percebeu que a adversária estava deixando o recinto, ele disparou:
"Não saia, não, Maria do Rosário, fique aí! Há poucos dias, você me chamou de estuprador no Salão Verde, e eu falei que eu não estuprava você porque você não merece. Fique aqui para ouvir"

Ele achou que não tinha sido abjeto o bastante e complementou seu pensamento com uma entrevista ao jornal "Zero Hora". Disse:
"Ela [Maria do Rosário] não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece".

Defesa impossível
Com efeito, dispõe o Artigo da Constituição:
"Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos."

Jurisprudência já firmada pelo Supremo deixa claro que essa inviolabilidade não se aplica em relação a casos que não guardam relação com o exercício do mandato. Ou um deputado que tomasse a palavra para defender a pedofilia, o genocídio ou o extermínio de bolsonaristas estaria apenas exercendo uma prerrogativa de seu mandato.

Tanto é essa a jurisprudência do STF que o tribunal abriu, sim, ação penal contra o deputado, que está na Primeira Turma. E já negou pedido de extinção do processo.

Pois bem: em outra frente, Maria do Rosário havia recorrido à Justiça por danos morais. O TJ-DF condenou o deputado a pagar multa de R$ 10 mil, a postar a decisão em sua página no Youtube e a publicar a retratação em jornal de circulação nacional. O parlamentar recorreu ao STJ e perdeu. Embora a sentença tenha sido confirmada por um colegiado, ele não está inelegível ainda porque a Lei da Ficha Limpa não veta candidatos condenados em processos por danos morais.

Qual é o truque em que insistem seus defensores: o deputado não poderia ser condenado por incitamento ao estupro porque, afinal, ele está dizendo que, "se fosse estuprador, NÃO ESTUPRARIA…" Mais: seria falaciosa a inferência de que, ao dizer que ela "não merece" ser estuprada, outras mereceriam… Mais: ele teria reagido à agressão.

Se reação houve, ela se deu em 2003, não em 2014, onze anos depois. Reitero: ele poderia tê-la levado, 14 anos atrás, ao Conselho de Ética. Mas preferiu ameaçá-la com uma bofetada, lascar a frase do estupro e concluir com um xingamento: "Vagabunda!"  Onze anos depois, repete a barbaridade e a reitera em entrevista ao jornal, aí explicando o que quis dizer com o critério do merecimento: essa seria uma distinção cabível só às mulheres bonitas.

De todo modo, a jurisprudência do Supremo é farta: "Os atos praticados em local distinto escapam à proteção absoluta da imunidade, que abarca apenas manifestações que guardem pertinência, por um nexo de causalidade, com o desempenho das funções do mandato parlamentar. (…) A prerrogativa indisponível da imunidade material — que constitui garantia inerente ao desempenho da função parlamentar (não traduzindo, por isso mesmo, qualquer privilégio de ordem pessoal) — não se estende a palavras, nem a manifestações do congressista, que se revelem estranhas ao exercício, por ele, do mandato legislativo."

Assim, ainda que se pudesse demonstrar que a opinião de que estupro é merecimento que só às mulheres bonitas assiste guarda nexo com a função de deputado federal, há que se destacar que a primeira fala de 2014, com efeito, foi disparada do plenário, o local por excelência daquela imunidade, mas a segunda não! Bolsonaro falava em a um jornal.

Direita asquerosa
O que Bolsonaro pensa sobre economia. Não sei, ele não sabe, não o sabem seus adeptos. Mas sabemos que o ele pensa sobre estupro e mulheres bonitas. O que Bolsonaro pensa políticas públicas? Idem. Mas sabemos o que ele pensa sobre quilombolas gordos. O que Bolsonaro pensa sobre segurança pública, além de defender o fim do Estatuto do Desarmamento — e olhem que seu domicílio eleitoral é o Rio… Bem, não sei, ele não sabe, não o sabem seus fanáticos. Mas a gente sabe o que ele pensa sobre o que deve fazer um pai ao notar que o filho é "meio gayzinho": dar-lhe um "couro", uma surra.

A essa miséria nos querem arrastar alguns delinquentes intelectuais que se querem membros "da direita". A exemplo, aliás, dos neonazistas e dos supremacistas que invadiram Charlottesville, ousam mesmo em falar em "união da direita". E, para esses vagabundos morais, não se deve hostilizar intelectualmente o bolsonarismo porque, se não der para vencer a eleição com outro nome, que vá Bolsonaro mesmo…

Uma ova! Comigo não!

Pra começo e fim da conversa, Bolsonaro não é de direita! É só um demagogo vulgar que resolveu excitar o ódio, o rancor e o ressentimento de outros tão ou mais ignorantes do que ele próprio.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.