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Reinaldo Azevedo

Miller inventa tipo penal novo: a “lambança”. Essa turma pede para si o que não dá aos outros

Reinaldo Azevedo

29/11/2017 17h27

Marcelo Miller, o ex-procurador-geral da República que costurava pra fora, prestou depoimento à CPMI da JBS. Antes que prossiga, uma consideração. Há quem não tenha entendido, afinal, qual foi a decisão do ministro Gilmar Mendes a habeas corpus preventivo impetrado pela defesa para que Miller pudesse ficar calado. Reproduzo trecho:

"Defiro o pedido de medida liminar, para que a Comissão Parlamentar de Inquérito conceda ao paciente o tratamento próprio à condição de acusado ou investigado, assegurando-se-lhe o direito de (I) não assinar termo de compromisso na qualidade de testemunha; (II) não responder a eventuais perguntas que impliquem autoincriminação, sem que sejam adotadas quaisquer medidas restritivas de direitos ou privativas de liberdade, como consequência do direito de não produzir provas contra si próprio; (III) ser assistido por seus advogados e de, com estes, comunicar-se durante o depoimento; e (IV) ter acesso amplo, por meio de seus advogados, aos elementos de prova já documentados no inquérito que digam respeito ao exercício do direito de defesa. Ressalvo que, com relação aos fatos que não envolvam autoincriminação, persiste a obrigação de o depoente prestar informações."

Vale dizer: ele tinha de responder às perguntas que não implicassem auto-incriminação. Nesse caso, não havia escolha. Ou melhor: havia. Ele próprio decide o que pode e o que não pode incriminá-lo. Ao fazer tais juízos, fornece pistas a seus investigadores, certo? Na verdade, o que Miller queria era não comparecer à comissão, prerrogativa que ele deve ter encontrado em algum manual alternativo de direito. Só por isso seus advogados recorreram para tirar a questão das mãos de Gilmar Mendes. Ele sabia que o ministro jamais lhe negaria o fundamento constitucional de não se auto-incriminar. Acontece que ele nem queria comparecer.

Agora vamos ao ponto.

Doutor Miller é mesmo um homem singular. Seu depoimento à CPMI chega a ser quase comovente porque vi, ali, ser exercitado, até as franjas do absurdo e da licença poética, a chamada "presunção de inocência". E tal presunção era de tal sorte exercitada que ela foi evocada até quando o doutor — num surto de criatividade e depois de pôr até os filhos no meio (filho costuma entrar em defesa própria, e a mãe, para atacar adversários) — ousou criar um tipo penal novo, ainda não previsto em nosso Código específico: a chamada "lambança".

Doravante, se queremos punir certos comportamentos, é forçoso que se reconheça: faz-se necessário prever pena para a "lambança". Como defini-la? Bem, aí as coisas já se complicam um pouco.

Notem: o doutor atuou nos bastidores da delação da Joesley Batista e companhia, antes ainda de se produzirem as tais "provas" contra os alvos da investigação — o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves. Era, sim, ao contrário do que diz, o homem de Rodrigo Janot da Lava Jato na Procuradoria Geral da República. Isso, por si, desmente a versão de doutor Janot de que, de súbito, foi surpreendido por Joesley com uma gravação na mão e ideias torpes na cabeça. Não! Já está demonstrado que os contatos de Miller e de Eduardo Pelella, chefe de gabinete do então procurador-geral, estavam em tratativas com a cúpula da JBS antes mesmo que Joesley gravasse as conversas com o presidente e com Aécio.

O conjunto tem o fedor óbvio do flagrante armado, que vem a ser, ele sim, um crime. Para lembrar: na gravação com Temer, o presidente não condescende com a compra do silêncio de Eduardo Cunha. Isso não está lá. No caso Aécio, com entrega de dinheiro e tudo, Janot não aponta em que momento está caracterizada a corrupção passiva. Mas sigamos.

Membro do MPF, lotado na PGR, doutor Miller trocava e-mails com a cúpula da JBS em que se refere à JBS e a Joesley e sua trupe como "nós" e ao MPF como "eles". Nesse grupo do "nós" estava Fernanda Tórtima, advogada da gangue e irmã por consideração de Roberto Barroso. Barroso é o ministro mais, como direi?, "barroso" do Supremo. A despeito do parentesco que deveria fazê-lo impedido de votar em casos que digam respeito à JBS — ele deveria declarar a própria suspeição —, ele não só vota como antecipa juízo condenatório do senador dentro e fora do tribunal. Ele o fez dentro quando tratou da autonomia ou não do STF para impor medidas cautelares a parlamentares federais. Ele o fez fora em seminário da revista "Veja", em que voltou a tratar o político mineiro como culpado.

Mas vocês sabem… A essa turma que tem um entendimento novo do direito, tudo se permite. Então ficamos assim: todos os alvos da Lava Jato são, por princípio, criminosos. E que tratem de provar o contrário. Enquanto isso, os procuradores e juízes dispõem do uso livre das prisões preventivas. E todos os membros dos órgãos de investigação são, em princípio, inocentes, mesmo quando flagrados no crime.

É para esse caso que surge esta categoria interessante, este tipo penal novo, a "lambança".

Imaginem se algum político ou empresário tentasse se sair com essa… "Desculpe, doutor Moro, lambança, sim crime não"…

São Sérgio Moro certamente o perdoaria, não é mesmo?

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.