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Reinaldo Azevedo

Nada de mais grave pode acontecer a uma democracia do que o Judiciário politizado; a consequência é a insegurança jurídica

Reinaldo Azevedo

27/03/2018 09h02

Há uma crise óbvia de responsabilidade no país. Uma das suas evidências é o desvio populista dos senhores magistrados das mais diversas instâncias. Nada de mais grave pode acontecer a uma democracia do que a politização do Judiciário. Esta representa uma ameaça concreta ao sistema, uma vez que, dado o modelo tripartido do republicanismo, os senhores togados encarnam também o antigo Poder Moderador.

Qualquer dos Poderes, quando hipertrofiado, revela disfuncionalidades antigas e produz outras novas. No caso, temos o aparato investigativo-judicial-punitivo — Ministério Público e Justiça — agigantado, açambarcando, à luz do dia e sem qualquer solenidade, funções que pertencem ao Executivo e ao Legislativo. Chegamos a esse ponto em razão de uma disfuncionalidade herdada: o chamado presidencialismo de coalizão chegou a seu estado de miséria com o petismo na exata medida em que se alargou de tal sorte a base de apoio ao governo e com tal sanha se tentou eliminar a divergência e destruir as vozes discordantes que o desdobramento óbvio consistiu em lotear a máquina pública numa dimensão jamais vista.

Em certa medida, o PT foi bastante generoso com seus sócios. Ministérios e estatais podiam ser entregues de porteira fechada. Ainda que alguns contassem propina, a contabilidade mais perversa era mesmo a de votos no Congresso. Por que "perversa"? Não sou o tipo de bobo — posso ser de outro modelo, mas não deste — que ignora que um governo comanda a máquina publica com aliados. Ocorre que é preciso ter um propósito. As alianças precisam ser feitas com alguma finalidade. A partir da segunda metade do segundo mandato, o PT abandonou qualquer veleidade de construir uma alternativa de poder àquele modelo que herdou — ainda que seus pressupostos não me servissem — e passou a operar com o fito único de se manter o controle da máquina pública. Até a reforma política que viria a imaginar, já no governo Dilma, desenhada pelo advogado Roberto Barroso, então mero esbirro do partido, tinha como objetivo perenizar-se no poder.

Ora, qual é o mal evidente de uma construção com essas características? As medidas corretivas até para a sustentação da arquitetura condominial vão sendo adiadas porque esbarram nos interesses dos sócios. Com o tempo, quaisquer veleidades ou virtudes que tivessem como fito o interesse público — ainda que se pudesse discordar de seu viés ideológico — se perdem no interesse mesquinho, que busca preservar a própria máquina que se assenhoreou do Estado.

Aí veio a Lava Jato e puxou um fio que evidenciou a teia de relações promíscuas em que se enredavam o Executivo e o Legislativo, bastante deformados pela, digamos, teratologia petista. E nem os partidos que faziam oposição ao PT escaparam, uma vez que, em sua sanha moralizadora, a operação pôs no mesmo saco de gatos pardos caixa dois, propina, loteamento de poder — isso a que a imprensa chama "fisiologia" — e até as negociações políticas legítimas, sem as quais a própria democracia não tem como ser exercida. Querem um exemplo? A demonização das emendas parlamentares é uma estupidez e um desserviço à democracia — desde, é claro, que não se confundam com assalto.

Esse aparato judicial e policial não se contentou, como seria o correto, em detectar as falhas e mobilizar o arcabouço legal para coibi-las. Não quis ser o reformador do sistema. Ao contrário! O país passa por uma espécie de ânsia da tábula rasa. Não é raro que se ouça, especialmente nas vozes vindas do Ministério Público, a máxima de que é preciso refundar a democracia, o país, a política, as instituições. A matriz desse discurso, lamento dizer, é fascistoide — e, na sua origem histórica, podem estar tanto o fascismo de esquerda como o de direita.

Ou por outra: cumpria a esse aparato, cujas funções foram definidas pelo constituinte originário de 1988, corrigir os desvios do sistema. Em vez disse, os valentes resolveram ser eles próprios o poder. Passaram a produzir discursos políticos em vez de provas; passaram a demonizar a política em vez de buscar punir, de forma objetiva, os culpados. Mais: voltam-se contra o próprio arcabouço legal que os criou e exigem do Congresso, do Executivo e até da fatia legalista do Supremo que se subordinem a seu particularíssimo entendimento do que seja a democracia. Ou é assim, ou os recalcitrantes merecerão a pecha de "inimigos da Lava Jato" e de "defensores da corrupção".

Ou os Poderes da República recuperam suas prerrogativas, com a devida correção dos vícios, ou estaremos condenados a uma forma muito particular de atraso: seremos os campeões mundiais do moralismo e do atraso.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.