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Reinaldo Azevedo

No seminário de O Globo, e só lá, Janot se transforma em Galaaz, o cavaleiro virgem do Santo Graal

Reinaldo Azevedo

30/08/2017 16h27

"Galaaz", pintura de Arthur Hughes. Janot se oferece para nosso cavaleiro improvável

Você está a fim, leitor, de conhecer um herói sem máculas, um verdadeiro Cavaleiro do Santo Graal, o Galaaz incorruptível? Ah, é Rodrigo Janot, especialmente aquele que falou num seminário no jornal "O Globo", intitulado "E agora, Brasil?" Pelo meu crivo, esse título jamais passaria, né? Qual Brasil? Estamos em busca, por acaso, da República Unitária? A qual país interessa, por exemplo, a impunidade de Joesley Batista? A qual Brasil interessa a nova ameaça que o procurador-geral fez ao presidente da República ao fim do seminário? A qual Brasil interessa o plano esboçado pelo Galaaz gordoto de transformar o Ministério Público no Quarto Poder da República? O problema — e a solução — da democracia está na existência de vários Brasis, unidos, aí sim, por uma Constituição e por leis de alcance nacional. Ou são respeitadas ou não são. E o MPF, com alguma frequência, as ignora, sob o silêncio ou aplauso cúmplices de setores da imprensa.

Leio as emoções nem tão vastas e os pensamentos sempre imperfeito de Janot no Globo. Esse rapaz não deixa de ser impressionante. Ele é muito menos sagaz intelectualmente do que supõe. Mas, se aqueles com quem dialoga não se interessam por suas falhas de raciocínio, então o que triunfa é a tolice pomposa e eventualmente perigosa. É bem verdade que, para contestá-lo, é preciso que as pessoas saibam do que ele está falando. E que o objetivo da conversa seja realmente a chamada dialética do esclarecimento, não a justaposição de meras sentenças morais e intenções mal alinhavadas, que caracterizam o falastrão peripatético do emburrecimento.

Vamos lá.

Janot diz que o sistema de leniência está uma bagunça. Para que deixe de sê-lo, diz ele, o Ministério Público Federal tem de ser o centro da coisa. Então ficamos assim: o MPF detém o monopólio da ação penal. Graças a uma interpretação larga da Constituição, sem amparo no texto, tomou para si a função subsidiária de polícia. Os procedimentos de investigação foram se multiplicando. O que era uma ação possível, lateral, se tornou central. Insatisfeito, Janot foi a Justiça — sim, senhores! — para conquistar o monopólio das delações premiadas. Se vitorioso, não creio, jogará a Polícia Federal para escanteio.

No caso da bagunça das delações, ele não quer mexer. Acusações as mais estrepitosas estão dando em nada porque se aceitou a palavra do delator como sinônimo de verdade, sem investigar coisa nenhuma. Apurados os fatos em inquéritos, a Polícia Federal não tem conseguido achar as evidências das denúncias e acusações. Lembram-se daquelas histórias de que Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney tentaram atrapalhar a Lava Jato, obstruindo, segundo o Galaaz Gordoto, a investigação? Janot chegou a pedir a prisão de dois senadores — em pleno exercício do mandato e que não tinham sido presos em flagrante por crime inafiançável, como exige a Constituição — e de um ex-presidente da República com base na gravação de uma conversa feita pelo bandido premiado Sérgio Machado. A PF investigou. Não encontrou nada. Tudo mentira.

Sabem aquela outra história, esta oriunda de Delcídio do Amaral, de que a ex-presidente Dilma também tentara obstruir a investigação nomeando dois ministros do STJ para facilitar a soltura de um empresário preso — no caso, Marcelo Odebrecht? Então, mentira também. Não se encontrou evidência nenhuma. Tudo papo furado. E assim acontece com muitos outros casos. O problema é o nome das pessoas já ter ido para a boca do sapo, né? Também da lavra de Delcídio, não veio a informação de que o banqueiro André Esteves é que teria bancado a compra do silêncio de Nestor Cerveró? O banqueiro foi preso. O BTG Pactual, de que é sócio, teve perdas significativas. Sem nem um pedido de desculpas, os bravos se corrigiram: "Opa! O dinheiro veio de José Carlos Bumlai, não de Esteves"…

Janot quer alguma mudança nessa área de delação? Não! Para ele, está bem assim. Pretende, ora vejam, é abocanhar a parte de que ainda não é monopolista: o acordo de leniência. Há gente demais por lá, segundo diz, com assento no Poder Executivo. Janot reivindica a exclusividade da ação penal, da ação policial, dos acordos de delação e dos acordos de leniência. Nem Dario, Xerxes e Artaxerxes, os reis persas notórios pelo poder despótico, dispunham de tanta discricionariedade. Lembro que os acordos de delação da Odebrecht, homologados por Cármen Lúcia, trazem até penas extrajudiciais alternativas. Eram obrigados a dividir parte dele com a enorme burocracia estatal, comandada por eunucos. Janot tem em setores da imprensa os eunucos de hoje. Ah, é bom lembrar: os eunucos não eram seres servis e inocentes. Também tinham seus interesses. Leiam "Criação, de Gore Vidal.

E Janot abusou da paciência dos informados ao falar sobre foro privilegiado, as dez medidas contra a corrupção, financiamento de campanha etc. O que une todas as suas respostas? O inconformismo com o regime democrático. Janot sempre foi mais oportunista do que esquerdista. E isso quer dizer que sabe ser as duas coisas.

Por que setores da imprensa que dizem ter um viés liberal se tornam seus porta-vozes? Sei lá. Também é possível oportunista e liberal, não é?

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.