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Reinaldo Azevedo

O que espantou no STF foi a pobreza de argumentos. Dodge, Fux, Barroso, Fachin, Cármen... Só exercício de “direito criativo”

Reinaldo Azevedo

23/03/2018 07h24

O Supremo adiou para o dia 4 de abril a votação do habeas corpus preventivo impetrado pela defesa de Lula, que se ancora na presunção da inocência, garantida pelo Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição: "Ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Vale dizer: só se é culpado e só se cumpre pena depois de condenação em terceira instância. Por 7 a 4, os ministros decidiram que o HC de Lula tem, sim, de ser avaliado pelo Supremo. Os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia não queriam nem mesmo examiná-lo.

Com o adiamento, foi preciso votar uma liminar para garantir a Lula a liberdade ao menos até o julgamento do recurso. Votaram contra, além desses quatro, o ministro Alexandre de Moraes. Garantiram a liminar Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Sem esse instrumento, Lula poderia ser preso na próxima segunda e solto nove dias depois, caso, no julgamento de mérito, a maioria acate o habeas corpus preventivo.

Esse mesmo placar de seis a cinco, com essas mesmas pessoas, deve-se repetir quando se votar o mérito do HC. Uma nota: esse recurso nem deveria estar sendo votado. Se a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, tivesse cumprido a sua obrigação, estariam sendo votadas as suas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, já liberadas para exame por Marco Aurélio, o relator, que trata do tema. Não alcança apenas Lula. O Supremo tomará, então, uma decisão que tem efeito vinculante. E se vai acabar com o absurdo hoje em curso no tribunal. Há os ministros que concedem habeas corpus para condenados em segunda instância e há os que não concedem. A ADC vai unificar o entendimento.

Nada de excepcional aconteceu no tribunal. Examinar o cabimento de HC numa questão preliminar é coisa corriqueira. Adiar votação também. Conceder uma liminar — que é uma decisão provisória — a quem será certamente preso, a menos que obtenha o HC que já começou a ser votado, é questão de lógica elementar. Ela deveria ter sido concedida, como já disse, por 11 a zero. Infelizmente para o país, para o STF e para a institucionalidade, o placar foi de apenas 6 a 5.

Raramente ouvi e se ouviram tantas bobagens como nesta quinta. Quem abriu a sessão dos argumentos pífios foi Raquel Dodge. A doutora insistiu na tese esdrúxula, abraçada também por Roberto Barroso, é claro!, segundo a qual o HC nem deveria ser examinado porque à Súmula 691 do Supremo o impediria. E o que diz a tal Súmula? Relembro: "Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar." Como o ministro Humberto Martins, do STJ, havia indeferido liminar a habeas corpus preventivo impetrado naquele tribunal, então o STF estaria agora impedido de aceitar o instrumento.

Ocorre que tal Súmula não se aplica mais ao caso. Deixou de valer quando a Quinta Turma do STJ negou o habeas corpus a Lula por cinco a zero. Logo, a decisão já não era mais de relator, não era mais monocrática. Esse resultado foi aditado ao segundo pedido de habeas corpus, justamente o que está em julgamento, apresentado ao Supremo. Logo, esse HC já não mais se relaciona com a decisão de Martins.

Dodge insistiu ainda em outro papo furado. Como ninguém que é favorável à prisão em segunda instância consegue enfrentar o que está escrito na Constituição, então se apela, como ela fez, ao Pacto de San José da Costa Rica, de que o Brasil é signatário, que prevê o duplo grau de jurisdição para que se possa condenar alguém, vale dizer: são necessários ao menos dois julgamentos. E, diz ela, a prisão depois da condenação em segunda instância cumpre esse requisito. É verdade! Ocorre que o mínimo não é sinônimo de máximo. O pacto não impede garantias adicionais.

O voto de Edson Fachin, contrário a que se aceitasse o recurso, abusou da sintaxe de exceção e da linguagem empolada para incidir em bobagem semelhante, mas apelando a outro documento legal. Barroso aderiu a esse equívoco também. Seu argumento é tão despropositado que nem errado chega a ser. Apelando à letra "a" do Inciso II do Artigo 102 da Constituição, que, com efeito, define que cabe ao STF julgar "em recurso ordinário" a eventual recusa de habeas corpus por parte de tribunal superior, o doutor mandou brasa: então não cabe habeas corpus preventivo ao Supremo; caberia um recurso ordinário.

Acontece que o cabimento do recurso ordinário, como sabe qualquer estudante de direito ainda no nível "Massinha 1", não obsta a apresentação de um pedido de habeas corpus. O fato de um recurso ser cabível não implica que o outro não seja. É tudo de uma pobreza fabulosa!

Luiz Fux, o mais prolixo da turma, estava num dia particularmente, buliçoso. Numa das manifestações mais eloquentes do chamado "direito criativo", o doutor inventou que o habeas corpus existe só para casos de perseguição política. Foi explícito: "A doutrina do habeas corpus no Supremo Tribunal Federal foi para defender aqueles pacientes que estavam com restrições à sua liberdade no momento em que as liberdades públicas estavam suprimidas. Não me consta, na história do Supremo Tribunal Federal, que o habeas corpus foi erigido, pra que se usasse, em ultima instância, contra crimes contra a administração pública, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta…"

Isso não está na lei. Trata-se de uma invenção de Fux. A se levar a sério o que diz, então uma pessoa acusada desses crimes pode ser vítima de qualquer arbitrariedade, seja culpada ou inocente. Há um ovo de serpente sendo chocado lá no Supremo. Ainda voltarei a esse ponto em outro texto. O ministro estava com a voz um pouco estranha, algo pastosa, engolindo algumas sílabas. Num dado momento, ele se perdeu e perguntou o que estava sendo votado.

Não menos impressionante foi o voto de Cármen Lúcia. Ela discordou de Raquel Dodge e de Roberto Barroso: não cabe a Súmula 691. Ela discordou de Fux: não existem limites, digamos, temáticos para o habeas corpus: basta que esteja ameaçada a liberdade de ir e vir. Cantou a glórias do HC, mas o negou. Aderiu à tese de Fachin de que caberia um recurso ordinário, mas não habeas corpus. A exemplo de seu colega, não explicou por que são coisas excludentes. E fácil saber por que não explicou. É que não são.

A pobreza da argumentação evidencia que vivemos um tempo particularmente infeliz na esfera institucional. Ainda voltarei muitas vezes a esse assunto. Começa a fermentar no Brasil, à esteira da banda fascitoide da Lava-Jato, a cultura do ódio ao habeas corpus. E isso é sinônimo de ódio à democracia.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.