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Reinaldo Azevedo

O que liga as tartarugas da Amazônia ao livro “Submissão”, do francês Michel Houellebecq? Ou: os fascismos distintos, mas combinados

Reinaldo Azevedo

13/08/2018 16h52

Pesquisadoras do Inpa manuseiam tartarugas durante atividades de campo; foto foi censurada em congresso – Arquivo Pessoal

O que o mundo das tartarugas tem a ver com a morte da democracia? Vou explicar. Mas, antes, tenho de fazer algumas considerações.

O mundo está se preparando, "mutatis mutandis", para "Submissão", o romance lançado com estardalhaço, em 2015, pelo escritor francês Michel Houellebecq. Sim, é preciso mudar algumas coisas para adaptar às circunstâncias do real. Mas, tudo o mais constante, caminhamos para um mau lugar. O casamento da propagação dos valores "politicamente corretos" da esquerda com a dos "politicamente corretos" da direita tem tudo para resultar numa tirania, eventualmente sem Deus, porque será difícil erigir uma teologia em que o horizonte seja não as delícias do paraíso, mas o silêncio dos cemitérios.

Para quem não sabe: em seu romance, que gerou amores e ódios irreconciliáveis, Houellebecq imagina a vitória, numa França, em crise, de Mohammed Ben Abbes, líder de um tal Partido da Fraternidade Muçulmana. O homem e sua crença têm lá seus valores, não é? O poder volta a ser patriarcal, a poligamia passa a ser a admitida abertamente, os valores islâmicos se tornam oficiais e, sobretudo, as mulheres voltam para o ambiente doméstico. Leiam o livro. Bem, sob muitos aspectos, as coisas começam a dar certo. Os índices da economia francesa melhoram; o desemprego dos homens, com a volta ao lar das mulheres, cai drasticamente, e a escola, apelando a uma ironia que tem a ver com o debate obtuso no Brasil, deixa de ter partido. Passa a ser crença.

É a restauração moral. Leiam para saber as consequências da prefiguração

Sim, o romance de Houellebecq é uma crítica ao islamismo, particularmente cara a uma França que se vê na contingência de apelar à defesa do que chama "República" para conter a expansão do radicalismo religioso muçulmano. Ocorre que o livro é uma alegoria do triunfo da crença sobre o fato, da polícia religiosa (ou ideológica) sobre o pensamento livre, do preconceito sobre a tolerância, da unidade sobre a diversidade. A França de Mohammed Ben Abbes se torna, a seu modo, eficiente, como eficiente são os EUA de Donald Trump. No Brasil, é em nome da suposta eficiência — e, claro!, dos valores morais — que falam os admiradores de Jair Bolsonaro, agora com um braço também no empresariado. Há quem tenha descoberto virtudes liberais no discurso daquele senhor…

Agora as tartarugas

Leio na Folha que o pesquisador americano Richard Vogt, de 68 anos, um herpetologista respeitado, que trabalha na Universidade Federal do Amazonas, teve cassado o prêmio "Herpertólogo de Destaque", que lhe fora concedido pela Liga Americana de Herpetologia. Motivo: ao expor seu trabalho no mês passado em Rochester, estado de Nova York, sobre a comunicação entre os cágados, apareceram fotos de pesquisadoras com tarjas azuis, que lhes cobriam partes do corpo. Vogt pesquisa o tema há mais de 20 anos no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Não entendeu nada? A exposição de Vogt era acompanhada de imagens de pesquisadores em campo, homens e mulheres, quase sempre junto com as tartarugas. Eles aparecem de short e sem camisa. Ok. Admissível. No caso das moças, tarjas tomando partes do corpo sugeriam que estivessem em trajes sumários ou, sei lá, expondo suas "vergonhas saradinhas", para usar a expressão de Pero Vaz de Caminha ao descrever as índias para o rei D. Manuel em sua carta. Ocorre que esse trabalho de campo é realizado em rios da bacia amazônica. Dá para imaginar a temperatura.

As tarjas foram acrescentadas às imagens por decisão de Henry Mushisky, professor emérito da University of South Florida e coordenador do evento, e se deu à revelia de Vogt, que protestou contra a intervenção. Vistas as imagens sem as tarjas, as mulheres estão vestidas, com short ou biquíni, com os seios cobertos. Ocorre que o professor tem a fama de ter comportamento inapropriado diante das mulheres. Assédio? Constrangimento? Violência? Não consta! Ele faria piadas consideradas impróprias, inclusive em suas apresentações.

Willen Rosemburg, pesquisador da Universidade de Ohio e atual presidente da Liga Americana de Herpetologia, afirma que as imagens foram alteradas sem o prévio consentimento de Vogt. Diz: "Nós, da liga, consideramos também que essa atitude não foi correta. Vogt deveria ter sido contatado para fazer as alterações necessárias e retirar as fotos consideradas inapropriadas". Mesmo assim, o prêmio foi cassado. É Rosemburg quem chama a atenção para o que seria o comportamento impróprio do pesquisador que trabalho no Brasil, o que é negado por alunas suas.

Seja como for, estamos diante de dias obscuros. A onda contra as fotos começou, para não variar, nas masmorras em que se transformaram as redes sociais, manipuladas por embusteiros, pilantras e tarados — eles sim! Se Vogt tem um comportamento impróprio com as mulheres, que isso seja demonstrado de outro modo, não com essa ridicularia. Vivemos dias obscurantistas. E não! Ninguém detém o monopólio do comportamento policialesco.

O feminismo brucutu, e ele existe, pode perfeitamente condescender com a censura ao trabalho de Vogt. Em que esse ânimo difere daqueles que fazem blitzen em exposições de arte? Em nada! São apenas obtusidades distintas, mas combinadas e complementares. Nada é mais parecido com o fascismo de direita do que o fascismo de esquerda. E, como se sabe, ambos se unem para combater os liberais. Olhem para as urnas no Brasil: os grupos mais ativos nas redes têm um inequívoco acento religioso.

No fim das contas, esses extremistas têm em mente é "Submissão".

Até as tartarugas podem servir de pretexto.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.