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Reinaldo Azevedo

Professora agredida, bobagens que ela diz e boçalidade e hipocrisia do bolsonarismo

Reinaldo Azevedo

23/08/2017 16h27

Márcia Friggi: ela foi espancada por um adolescente infrator. Nada tem a ver com ideologia

A esta altura, todos vocês já conhecem a história da professora que foi espancada por um aluno em Santa Catarina. Márcia Friggi, de 51 anos, levou diversos socos de um estudante de 15. Ficou com o rosto cheio de hematomas. Eles haviam se desentendido, e Márcia o expulsou da sala. O rapaz, então, reagiu socando-lhe o rosto. Horror? Horror. Mas o pior ainda estava por vir. Palhaços da extrema-direita resolveram pegar carona no episódio. Com efeito, a professora é dada a defender boçalidades no Twitter. Não sei o que anda a dizer em sala de aula. Isso está sendo apenas presumido pelos seus críticos. O fato é que, de súbito, a agredida virou agressora. Já volto ao ponto. Antes, uma pequena digressão para nos aproximar do tema.

Dia desses, conversando com um jovem candidato a político, eu lhe disse que ainda mais importante do que o conteúdo de determinadas propostas é o tipo de público que elas mobilizam. Ao defender isso ou aquilo, escolhemos interlocutores, parceiros de jornada, adversários. Esses elementos determinam os meios com os quais se pretende atingir o fim anunciado — aquele contido na ideia. Se esses meios forem ruins, aquele fim está necessariamente comprometido. Sim, volto à minha máxima: os meios qualificam os fins.

Ele entendeu o que eu disse, mas preferiu o que considero o caminho do erro. Notei que o dito-cujo lhe tinha utilidade instrumental. É a nova velha política. Ou a velha nova política. A cada pouco, as novas gerações repetem boa parte dos erros das que as precederam.

O que quero dizer, meu caro leitor, é que cabe a você decidir com quem pretende fazer um mundo melhor. Ideias em estado puro são como palavras no dicionário. Os melhores indicam os distintos empregos dos vocábulos, chamando a atenção para o contexto. Ainda assim, não se tem ali um discurso. Aquele livrão — hoje em versão eletrônica — é só vida potencial. É o manejo de cada um daqueles termos que vai fazer horror ou maravilha, que vai resultar em "Minha Luta", de Hitler, ou em "Fausto", de Goethe.

Não existe um dicionário das ideias, a não ser o maravilhoso "Dicionário das Ideias Feitas", de Flaubert, que faz justamente blague do fato de que, com alguma frequência, as ditas-cujas degeneram em clichês, que nada significam. Expressam, quando muito, um saber vulgarizado e já destituído de qualquer interesse, graça e, se querem saber, verdade. O clichê é uma das formas de ser da morte do sentido.

A professora
Agora quero voltar à professora Márcia Friggi. É evidente que foi vítima de uma violência inaceitável. Não é a primeira. Não será a última. O aluno que a espancou tem 15 anos. Antes que se conhecessem as circunstâncias do conflito, fascitoides asquerosos resolveram transformar a vítima em ré. No comando da barbárie nas redes sociais, estão as hostes que se identificam com o deputado Jair Bolsonaro, dito pré-candidato à Presidência da República. Também o deputado Pastor Feliciano resolveu postar um vídeo asqueroso a respeito do assunto.

Qual é o ponto? A professora é, obviamente, uma militante de esquerda — ou, ao menos, adota pontos de vista da esquerda. Em seu perfil no Twitter, defendeu, por exemplo, o ato de uma estudante que jogou um ovo em Bolsonaro. Numa entrevista, ela diz com todas as letras: "Eu não sei de violência nenhuma contra Bolsonaro; o que eu sei é que foi jogado um ovo, e eu considero essa atitude como uma revolução". Ela também tem um juízo sobre João Doria, prefeito de São Paulo: "Este homem é um monstro. Odeio o Doria e tudo o que ele representa". E se refere ao juiz Sérgio Moro assim: "Moro, nunca fui com a tua cara, mas sou obrigada a te agradecer. Vale por mostrar pra todo mundo a 'fortuna' de Lula. Péssimo chefe de quadrilha, né? Só essa merreca? Em 8 anos de mandato, quase 70 de vida? Que coisa, né?"

Os fascistoides
Muito bem! Foi o que bastou. Feliciano e o vereador Carlos Bolsonaro vieram a público para, num ato de covardia hipócrita, ou de hipocrisia covarde, lamentar o ocorrido. Sim, ambos disseram ser contra a violência, repudiar a agressão. Mas, ora vejam!, a dupla resolveu lembrar a militância esquerdista da professora, com especial relevo, claro!, para a afirmação estúpida daquela senhora de que jogar um ovo em Bolsonaro é uma revolução… Contam-me que Eduardo, também Bolsonaro, deputado federal, fez a mesma coisa.

Nos dois vídeos, emprega-se mais tempo atacando a professora do que lastimando a violência. Pior: tanto Feliciano como os bolsonarinhos resolveram enveredar pelo caminho da, digamos, teoria e atacaram… Paulo Freire. Essa escola que aí está, em que estudantes espancam professores, seria consequência prática da aplicação das teses do educador. O que acho de Paulo Freire? Abaixo, uma consideração rápida:

https://www.youtube.com/watch?v=FVC-XsMpoUA&feature=youtu.be

Recorrendo ao Google, vocês encontram críticas ainda mais duras.

Ocorre que o evento de Santa Catarina nada tem a ver com Paulo Freire. Se a turma tivesse a mínima noção do assunto — e sustento que não conhecem a teoria nem leram livros do autor —, não diriam tal besteira. Estão apenas repetindo a versão rebaixada do que ouviram da boca de alguns supostos gurus da direita. Na utopia, ou distopia, freiriana, professora e aluno estariam, unidos, educador-educando, numa "relação dialética", a lutar contra o sistema que a ambos oprimiria.

Parem de falar bobagem, bolsonarinhos! Vão estudar!

Pare de falar bobagem, Feliciano! Vá estudar!

Nada na teoria freiriana — e eu os desafio e a seus gurus eventualmente alfabetizados — a evidenciar que texto de Freire justifica que um aluno soque a cara da professora. "Ah, é que ele incentivava a luta de classes…"

Desconfio que esses senhores confundam "luta de classes" com "luta armada" e "socar a cara" com "revolução". Vale dizer: são tão profundos como a professora Márcia Friggi, para quem revolução é jogar ovo…

A saia curta da estuprada
Quantos são, e os há, homens e mulheres, que consideram que, ao usar uma roupa provocante, uma mulher cria circunstâncias facilitadoras para o estupro? E, claro!, se você é desse tipo, começará a sua fala mais ou menos assim: "Não que eu apoie ou justifique o estupro, mas…" Ou ainda: "Eu não estupraria você porque você não merece." Ou ainda: "Ela não merece ser estuprada. É feia demais".

Escola Sem Partido
Tanto Feliciano como os bolsonarinhos evocam o "Escola Sem Partido" ao tratar da questão. Uma lástima. Enquanto esse movimento propunha a mobilização dos pais contra o patrulhamento das esquerdas nas escolas, contou com o meu apoio. Parecia-me, e acho que chegou a ser, um movimento civilizador.

Hoje, o "Escola Sem Partido" deixou-se sequestrar pela direita xucra. Em vez do caminho virtuoso do debate e do enfrentamento das ideias feitas, escolheu o da patrulha, apelando, ora vejam!, à intervenção do Estado para mediar o conflito de ideias.

Meu blog tem 11 anos de estrada. Devo ter mudado aqui e ali, mas muito pouco. Continuo a repudiar fascismos e fascistoides, de esquerda ou de direita. Que outra coisa poderia fazer um liberal… se liberal?

Para encerrar
Sabe-se agora que o tal rapaz que espancou a professora já agrediu a mãe, já foi submetido a medidas socioeducativas e tem um histórico de evasão escolar e uso de drogas.

O que Paulo Freire ou as ideias de esquerda que se veiculam nas escolas têm a ver com isso? Nada! Um fascista, de direita ou de esquerda, está sempre à caça de um pretexto que justifique a boçalidade. É que lhe faltam inteligência, clareza, generosidade, disciplina e ética para chegar aos motivos.

Como se vê, o caso remete a uma realidade brasileira bem mais complexa do que pode entender essa direita de picadeiro.

Ah, sim: os brucutus virtuais de Bolsonaro e afins podem babar à vontade. Como de hábito, o ódio que me devotam certas correntes de, por assim dizer, "pensamento" me é revigorante.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.