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Reinaldo Azevedo

Caetano, pedofilia, absurdos em penca e um momento de notável degradação do debate político

Reinaldo Azevedo

23/10/2017 22h46

Caetano (à dir) e seus filhos: Tom (à esq), Zeca e Moreno (do primeiro casamento). Com Paula, tem ainda a filha Júlia. Acima, cartaz do show que o veterano cantor e compositor faz com os filhos

Caetano Veloso é um compositor ímpar. Nos tempos de certa inocência bruta que havia no Brasil, eivada de brutalidade nada inocente, havia uma espécie de "FlaX Flu": Caetano ou Chico? Tenho 56 anos. Fui comunista a tempo de ver um Caetano ainda demonizado pelas esquerdas porque supostamente alienado. Todos envelhecemos. Ele também. Tentem saber o que foi a tal "Geração Odara", de que a militância mais ortodoxa fazia blague e caricatura. Eu gostava, particularmente, do seu entendimento da política que se dava, vamos dizer, na derivada. O próprio Tropicalismo se negava a ser programático. Não havia como debatê-lo numa reunião do "Partidão".

O cantor e compositor baiano é um cara culto, lido. Já o elogiei e critiquei bastante. Nos últimos tempos, mais críticas do que elogios. E também já levei porrada de volta. Lamento suas opiniões políticas de agora porque ele passou por aquilo que eu chamaria de "Regressão de Sartre", numa referência ao intelectual que consegue atravessar o momento de polarização ideológica de escala literalmente mundial, que opunha genocídios, fazendo a profissão num engajamento que não era partidário — e era o mais difícil. Mas Sartre cedeu depois à metafísica do Partido Comunista e, mais tarde, pior ainda, à dos porras-loucas de 1968, com apelos francamente reacionários, como Raymond Aron demonstrou de modo brilhante.

Acho que Caetano foi se apequenando ao longo dos anos, risco que correm as pessoas sempre que se tornam porta-vozes ou símbolos de causas. Se não deixa de ser um aspecto virtuoso que esteja sempre antenado com "o que é notícia", há nele uma voracidade vanguardeira que o impede de ser o que a idade lhe recomendaria: uma voz de conciliação — e não de conciliação de contrários, que isso é bobagem. Tem a vantagem de quem sabe muito mais do que a média, de quem já viveu mais do que a média no meio em que transita, de quem é muito mais ouvido do que a média. E creio que está usando mal tudo isso.

Entre outras besteiras, nos últimos tempos, vestiu a máscara dos black blocs — e isso é inaceitável, ainda que houvesse alguma justificativa estética —, engajou-se no "fora Temer", e dou como certo, já que está longe de ser burro, não ignorar que se juntava aos verdadeiramente reacionários, saudosos da Velha Ordem petista. Há dias, ele ainda tentou mostrar à turma do grupo Mídia Ninja que certo conservadorismo é necessário. Falo sobre o que li meio por cima. Não sei se chegou a dizer que há uma diferença entre conservadorismo e restauração; entre conservadorismo e reacionarismo; entre conservadorismo e ódio a tudo o que nos desafia. Mas isso é lá com ele.

Cobram-me que escreva ou fale algo sobre a acusação de pedofilia de que é alvo das redes sociais. Além de lamentar, dizer o quê? Acusados e acusadores, e ambos os lados em sentidos múltiplos, vão se encontrar na Justiça. Nas democracias, é assim que se faz. Quando Caetano, aos 40, começou a namorar Paula, aos 13 — e, até onde sei, com o consentimento da família —, inexistia a lei que não exclui o crime nas relações sexuais com pessoas menores de 14 anos, ainda que consensuais. A Lei 12.015 é de 2009.

Caetano e Paula são casados, com filhos adultos. Trata-se de uma família. Para quem conhece a história, a relação era multiplamente consensual: de ambos, das respectivas famílias, do meio social. Uma pesquisa rápida na jurisprudência ainda hoje dirá que os tribunais têm tomado decisões distintas a respeito do assunto, mesmo depois de 2009. Explico.

Acho que a lei é prudente ao manter a restrição, não aceitando a justificativa do consentimento, da consensualidade, nas relações entre adultos e menores de 14 anos. O Brasil ainda é um país pobre e violento. As meninas, em particular, nos rincões e nos bolsões de miséria — material ou moral, ou ambas — dos grandes centros urbanos, estão expostas. O STJ recusou, por exemplo, o argumento da relação consensual num caso que envolvia um padrasto e uma menor de 14 anos, ainda que ambos a afirmassem. Parece-me razoável supor que a óbvia relação de poder que ali se via recomendava prudência. Quantas meninas poderiam, por medo de retaliação contra si mesmas e contra a família, afirmar um consenso que não houve?

Ainda que tal lei vigorasse há 33 anos, não parece que estivessem dados atos de violência ou de assédio que caracterizassem pedofilia — um comportamento que, de resto, basta pesquisar um pouquinho, obedece a um outro padrão. Pedófilos não querem se casar com suas vítimas, ter filhos com elas, constituir família, suportar que envelheçam a seu lado, não é mesmo? Até onde sei, os dois se separaram há alguns anos e depois retomaram o casamento: ela com quase 50; ele, com mais de 70.

Aliás, o mesmo STJ que não admitiu o argumento da relação consensual entre padrasto e enteada o admitiu em caso diverso, em que não havia razão para desconfiar. O mesmo fez o Supremo, numa ação penal cujo relator era o ministro Marco Aurélio, que apanhou uma barbaridade das feministas. As mesmas que, obviamente, hoje acham um absurdo que se acuse Caetano de pedofilia. Também acho absurdo, note-se. Mas é preciso que os juízes avaliem cada caso mesmo com a lei que aí está. E não estou advogando que seja mudada.

A norma existe para proteger o conjunto da sociedade; a sua aplicação, para proteger os indivíduos. E, por essa razão, ainda que a presunção de culpa do maior na relação com menores de 14 possa proteger a maioria, não se pune um inocente contra os fatos.

Mas os tempos andam pouco hospitaleiros aos argumentos, não? "Se você discorda de mim, então eu o acuso de pedófilo". E, como eu discordo de você, então sou chamado de fascista!  Quem ganha com isso? O obscurantismo. Não! Eu jamais aderiria ao "342 Artes", ou algo assim, porque eu não acho que a liberdade de expressão tomou o lugar de Deus mesmo na consciência dos agnósticos e ateus. Também a tal liberdade tem limites. A criança, independentemente da vontade dos país, é tutelada pelo ECA. E, aqui, registre-se uma hipocrisia a unir adversários: a esquerda sempre idolatrou esse documento porque ela protegeria os menores da sanha punitiva da direita, que defende a maioridade penal aos 16. A direita sempre execrou o dito-cujo porque acha que serve para proteger bandidos. Os esquerdistas, no momento, renunciaram à sua bíblia, adotada pelos direitistas.

Não! Não houve pedofilia no MAM. E não faz sentido tachar Caetano de pedófilo porque, por óbvio, não há nada, até onde se sabe, que o caracterize como tal. Aliás, depois de um evento recente, que resultou na morte de duas crianças de três anos, seria o caso de tratar do assunto de modo mais decoroso, em respeito às vítimas e suas respectivas famílias.

Esse é um mau caminho. Respondo a um processo, ainda hoje, porque dei uma dura resposta a um cartunista que associou um movimento em favor do impeachment de Dilma a policiais assassinos que praticaram uma chacina em Osasco. Vale dizer: para o autor da peça, pessoas que queriam a petista fora do poder eram compatíveis com as que saíam matando a esmo. O autor da peça argumentou que se tratava de liberdade de expressão. Eu, que o critiquei, fui condenado em primeira instância porque teria sido preconceituoso e intolerante na resposta. Entenderam?

Hoje, no país, há um monte de gente investindo em feitiçarias que ainda se voltarão, porque sempre se voltam, contra os feiticeiros. É a democracia que se degrada. E, nesse caso, todos nos degradamos.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.