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Reinaldo Azevedo

EUA: convém não dar importância excessiva a Charlottesville, mas ignorar risco seria burrice

Reinaldo Azevedo

14/08/2017 06h48

Manifestação de supremacistas em Charlottesville, na Virgínia: voz das catacumbas

Convém não magnificar as coisas. Os confrontos entre supremacistas brancos e antirracistas ocorridos no sábado em Charlottesville, na Virgínia, nos EUA, são, por sua virulência, a exceção, não a regra. Mas convém também não fazer o jogo da Poliana sonsa ou cínica, ignorando a gravidade do caso e sua óbvia correlação com o discurso que chegou, vitorioso, à Casa Branca. Donald Trump não é e jamais será um representante da causa liberal e da democracia. Ainda que esse sistema o tenha levado lá. Mais: não se trata de uma disputa sobre o passado. Vamos ver.

A pouco mais de 180 quilômetros de Washington, D.C., capital administrativa, a cidadezinha de menos de 50 mil habitantes era conhecida, até a semana passada, por abrigar a Universidade da Virgínia, criada por Thomas Jefferson, e por ser considerada a localidade com a melhor qualidade de vida dos EUA. Da noite para o dia, ou nem tanto, viu-se tragada por rancores ancestrais, sim, mas que dizem respeito ao presente.

Três pessoas morreram no sábado, uma delas comprovadamente em razão dos confrontos. A assistente jurídica Heather Heyer, de 32 anos, foi atropelada por James Alex Fields Jr., de 20, um militante neonazista que mora em Ohio, a 865 km da cidade. Heather não resistiu. Fields Jr. feriu ainda outras 19 pessoas. Um helicóptero que monitorava os protestos caiu, e dois policiais morreram. O FBI investiga se o aparelho foi atingido por tiros.

O pretexto para a manifestação dos supremacistas foi a decisão da Prefeitura de remover de um parque a estátua do general Robert E. Lee (1807-1870). Ele foi um dos líderes das tropas confederadas durante a Guerra Civil, que opôs os Estados do Sul, escravocratas, aos do Norte, abolicionistas. O Norte venceu, mas, como se sabe, só em 1964 se aprova o Civil Rights Act, a legislação que tornava ilegal qualquer forma de discriminação.

Os supremacistas recorreram às redes sociais para atrair radicais de todo o país contra a retirada da estátua. Antirracistas se mobilizaram para garanti-la e para enfrentar os adversários. E se deu, então, o confronto, com o resultado conhecido. A questão é saber se estamos diante de uma mera disputa sobre o passado e sobre concepções equivocadas de história.

Vamos ver. Eu estou entre aqueles que acham que cidades e países têm de conservar as suas cicatrizes. Lee representava uma força política, econômica e social que fez parte de um confronto sangrento, que ajudou a definir, em muitos aspectos, os modernos Estados Unidos. Venceu, poucos duvidam, o lado mais afinado com os valores que consideramos básicos da civilidade e da civilização. Mesmo assim, pergunto: faz sentido derrubar a sua estátua? Resposta: não! Como é uma estupidez mudar o nome de um viaduto, em São Paulo, de Costa e Silva para João Goulart.

Nomes de logradouros públicos, estátuas, monumentos etc. compõem parte da civilização que herdamos, do que fizeram antes de nós. E cumpre, agora sim, saber o que faremos do que fizeram de nós. Não pensem, pois, que os defensores da remoção da estátua estavam movidos apenas a bons sentimentos. Mas não dá para ignorar o perfil dos que reagiram.

Estamos falando de supremacistas, de racistas, de neonazistas, de xenófobos, de antissemitas… Essa escória não está nem aí para o general Lee e sua causa. O que os une é o rancor contra negros, estrangeiros, gays, religiões que consideram erradas ou exóticas e vai por aí… Odeiam, aliás, com igual força a direita liberal, antifascista. O que os une, em suma, é a repulsa à diferença, a pessoas e forças que, na sua visão perturbada, ameaçam o que deveria ser o "estilo de vida da América".

Donald Trump, o presidente dos EUA, tem alguma responsabilidade no que aconteceu? Resposta: não! Mas isso não basta. É preciso que se diga agora: não tem, mas pode vir a ter a depender de como se comporte doravante.

A sua fala de sábado foi rebarbativa, vaga, preguiçosa. Limitou-se a combater a violência dos litigantes. Como se tivesse havido um confronto entre valores equivalentes, aceitáveis, mas opostos.

Neste domingo, a Casa Branca resolveu ser mais explícita:
"O presidente disse com muita firmeza, em seu discurso no sábado, que ele condena todas as formas de violência, e é claro que isso inclui supremacistas brancos, KKK, neonazistas e todos os grupos extremistas", disse o porta-voz. "Ele clamou por unidade nacional e por unir todos os americanos."

Bem, o ajuste era necessário. Não basta dizer-se contra os extremistas quando uma súcia em particular se manifesta. A menos que se queira flertar com ela. Retomo o assunto no próximo post.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.