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Reinaldo Azevedo

Foro especial: atuação de Cármen Lúcia foi vergonhosa para o STF

Reinaldo Azevedo

02/06/2017 00h51

Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes: o novato fez a defesa do STF; a presidente, só proselitismo (Foto Jorge Willian/O Globo)

Assistiu-se, nesta quinta, no Supremo a uma patuscada macabra. O que é "patuscada"? É festa, é folia, é algazarra, bagunça mesmo. Mas, como destaco, tudo foi uma pândega sinistra, que aponta para a degeneração do Estado de Direito. O pior é que alguns de seus porta-vozes se consideram moralistas exemplares.

O papel mais bisonho foi o de Carmen Lúcia, presidente da Casa. Explico tudo. No alto, ela aparece ao lado do ministro Alexandre Moraes. Coube ao novato fazer a defesa institucional da  Casa. ela se calou e ainda colaborou, entendo, para a sua difamação.

Vamos lá. O Supremo começou a julgar nesta quinta a Questão de Ordem na Ação Penal 937, em que se discute, por iniciativa do ministro Roberto Barroso, alterações no alcance do foro especial por prerrogativa de função. Segundo o doutor, este deve ser mantido apenas para crimes cometidos no exercício do cargo ou relacionados às funções desempenhadas.

Todos temos direito a nossas próprias opiniões, mas não temos direito a nossos próprios fatos. Vamos ver. Você pode ser a favor do foro como é hoje ou contra qualquer foro. Eu, por exemplo, defendo um disciplinamento da questão, mas se mantendo, sim, uma corte especial. Ou a vida pública ficará sujeita a todos os rancores e ódios próprios da política.

Mas não me perderei nisso agora, leitor amigo. Cada um com a sua opinião. Em uma coisa, no entanto, não cabe divergência. Isso é matéria constitucional — clara e inequívoca —, e ministros do STF não foram feitos para legislar.

Moraes e o pedido de vista
O primeiro a votar foi o ministro Alexandre de Moraes. Pediu vista, sim, mas não sem fazer a defesa institucional do Supremo Tribunal Federal, acusado, de forma injusta, como Casa da impunidade. Disse o ministro:
"A afirmação de que o foro no STF acaba gerando impunidade não só não tem respaldo estatístico como acaba por ofender e desonrar a própria história do Supremo (…). Não há uma instância mais eficaz do que a outra. O que há é um Poder Judiciário querendo colaborar no combate à corrupção no país."

Está coberto de razão! Números que circulam por aí são fajutos. Fosse como querem alguns, o Brasil seria um paraíso da justiça, não é mesmo?, já que a esmagadora maioria da população não tem foro especial. Você se atreveria a endossar essa ideia, leitor amigo? Você se atreveria a dizer que a Justiça de primeira instância é, no geral, justa e eficaz?

Ao justificar o pedido de vista, o ministro afirmou que precisa analisar com mais profundidade as diversas dúvidas que tem. Certamente fundadas. Querem uma? Pegue-se o deputado "X". Ele foi condenado em primeira e segunda instâncias por um crime anterior ao mandato. Poderia até ser preso não fosse um detalhe: a Constituição estabelece, no Parágrafo 3º do Artigo 53, que, antes de a sentença ter transitado em julgado (não caber mais recurso), o parlamentar só pode ser preso em flagrante por crime inafiançável.

E, bem, o dito-cujo vai acabar recorrendo ao… Supremo! Ora, já não era mesmo aquele o seu foro original? O que muda nesse caso? A tramitação se torna mais lenta e mais cara. É um despropósito! Pior: ficam abertos os caminhos para as pequenas e grandes vinganças. Uma pessoa com cargo público, exposta à Primeira Instância, já pode se considerar com um pé na cadeia…

Antecipando votos
Dado o pedido de vista, eis que três ministros, num gesto absurdo de descortesia com o colega, de afronta ao outro, de rixa pura e simples, resolveram antecipar seus respectivos votos: Marco Aurélio, Rosa Weber e Cármen Lúcia. E ficaram com Barroso, totalizando, então, quatro em favor da tese exótica do doutor.

Do trio, só um comportamento é mesmo inaceitável: o de Cármen Lúcia!  Diria ser vergonhoso. Explico.

Marco Aurélio, o "causão" de sempre, resolveu que esta quinta era um bom dia para condescender com o STF Legislador. Afirmou, com sua pompa habitual:
"Se digo que a competência é funcional, a fixação, sob o ângulo definitivo, ocorre considerado o cargo ocupado quando da prática delituosa, quando do crime, e aí, evidentemente, há de haver o nexo de causalidade, consideradas as atribuições do cargo e o desvio verificado".
Eis aí: seria uma consideração excelente para um deputado que estivesse apresentando uma emenda constitucional.

Rosa Weber — e não estou certo de que entendesse direito o que se debatia — tentou ser profunda:
"O instituto do foro especial, pelo qual não tenho a menor simpatia, mas que se encontra albergado na nossa Constituição, só encontra razão de ser na proteção à dignidade do cargo, e não à pessoa que o titulariza".
A fala é boba e não serve para nada. Quando se estabelece o foro especial, não é para proteger o cargo, não! A questão é mesmo a pessoa. Tanto é assim que estamos a tratar da esfera criminal. Um inimigo do passado ameaça o cargo de um deputado ou senador agredindo o seu titular. Mas entendo Rosa: não deve ser fácil para ela.

Cármen Lúcia, no entanto, é imperdoável. Assistiu inerme aos ataques que Barroso fez ao Supremo — sim, ele tratou o tribunal como uma espécie de símbolo da impunidade, o que é falso — e nem mesmo se ocupou de contestar a corrente orquestrada para difamar a Corte Maior do país. E a meritíssima tem esse papel institucional.

Pior do que isso: ela mesma, embora presidente do tribunal, resolveu antecipar a sua posição, apelando a uma retórica, vênia máxima, hipocritamente igualitarista. Afirmou a "çábia":
"O Brasil é uma República na esteira da qual a igualdade não é opção, é uma imposição (…) Essa desigualação que é feita para a fixação de competência dos tribunais, e, portanto, de definição de foro, se dá em razão de circunstâncias muito específicas. Portanto, no exercício daqueles cargos é que se cometem as práticas que eventualmente podem ser objeto de processamento e julgamento pelo Supremo e pelos órgãos judiciais competentes".

Dizer o quê? Os três ministros deveriam renunciar a seus respectivos mandatos e se candidatar. Se uma presidente do Supremo assiste muda a um ataque ao tribunal; se ignora que a questão de foro só pode ser tratada pelo Congresso; se aproveita a oportunidade para fazer proselitismo político e ainda tentar desmoralizar um colega…, trata-se, convenham, de uma postura política.

E é a barafunda política que ameaça engolfar o país.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.