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Reinaldo Azevedo

Isenção a igrejas também é dinheiro público; deve o Estado regular seu conteúdo teológico?

Reinaldo Azevedo

19/10/2017 16h57

Este livro merece respeito e não existe para oprimir ninguém nem para submeter o Estado, que é laico, à vontade de grupos influentes

Sou católico. Se eu confessasse por aí que sou dependente de alguma droga ilícita, haveria umas 200 ONGs interessadas em mim, dispostas a me proteger, menos de mim mesmo, certo? O ilícito costuma atrair a atenção e a proteção dos esquerdistas e afins. Também já entrei em embates muito duros, como quando quiseram cassar o diploma de psicólogo do pastor Silas Malafaia. Estava na cara que havia preconceito ideológico e religioso disfarçado de rigor técnico. E não! Eu não acredito em cura gay. E pouco importa se concordo ou não com o que diz o líder religioso. Devo ser o colunista na imprensa que mais apontou as heterodoxias de que Lula foi e é vítima na Justiça. O PT me detesta e já fechou uma revista minha. E daí? Trato do assunto na minha coluna de amanhã, na Folha.

Defendo a religiosidade como expressão dos direitos individuais e sociais e como expressão da cultura. Mas daí a permitir que as igrejas queiram se assoberbar em bedéis do Estado brasileiro vai uma diferença brutal. Nesta quarta, em Brasília, durante uma audiência pública, como relata reportagem da Folha, o ministro Sérgio Sá Leitão, da Cultura, foi alvo de agressões inomináveis. Reproduzo um trecho:

"Já no fim do debate, apresentando-se como católico, Givaldo Carimbão (PHS-AL) perguntou se o ministro acharia razoável expor sua progenitora como artistas do 'Queermuseu' o fizeram com Virgem Maria, a quem chamou de 'minha mãe'. Obras da exposição cancelada satirizavam e sexualizavam a mãe de Jesus, como uma em que ela aparecia acalentando um macaco. Carimbão lançou a hipótese da mãe de Leitão retratada "de pernas abertas", com genitália à mostra. Leitão se exaltou e, aos berros e com dedo em riste, acusou o deputado de 'ofender minha falecida mãe'. 'Ele baixou o nível e ofendeu diretamente a minha mãe, já falecida. De modo gratuito. Fez comentários absurdos. Superou o meu limite. Lamento profundamente', disse Leitão à Folha."

A chamada 'Bancada da Bíblia" quer que o governo federal, violando a Constituição, tenha uma espécie de poder de censura sobre exposições e manifestações artísticas que contem com o apoio da Lei Rouanet, que, berram, "é dinheiro público". O ministro tem a correta solução para o caso, compatível com o Estado de Direito: que a classificação indicativa se estenda também a esse tipo de expressão artística, como já existem em outras áreas. E, por óbvio, não compete ao Estado o papel de censor.

No outro extremo, claro!, situam-se as esquerdas, de que o jornal "O Globo" se tornou porta-voz. Até aí, faça o que lhe der na telha. Ocorre que a publicação passou a atribuir a Sá Leitão o que ele não pensa e o que ele não fez, como a defesa da censura e a submissão das manifestações artísticas que venham a contar leis de incentivo a um crivo religioso. O jornal chegou a inventar um artigo inexistente de uma Instrução Normativa. E depois ainda teve a ousadia de fazer um editorial, atacando o ministro, a partir do texto inexistente. O nome disso? Parece ser parte da campanha para derrubar o presidente Michel Temer.

Bem, meus caros, aqui se diz tudo, doa a quem doer. Parte do berreiro da patrulha religiosa — e não estou aqui a endossar o lixo estético que se faz passar por arte — se assenta no fato de que "a Lei Rouanet" é dinheiro público. Se é, o deputado Sóstenes, por exemplo, exige que o governo submeta as exposições e afins a uma espécie de crivo oficial. Bem, as palavras fazem sentido, e eu topo debater com Sóstenes. Não as matérias de Deus, mas a matéria dos homens.

Isenção fiscal, deputado, também é dinheiro público. E encontro lá na Constituição este dispositivo:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
VI –  instituir impostos sobre: (…)
b) templos de qualquer culto
"

Cuidado com os argumentos, Sóstenes! Se o emprego do "dinheiro público" — e a isenção fiscal também é uma renúncia! — justifica que o Estado interfira no conteúdo do que se produz, por que não se verificar, então, a qualidade teológica do que andam pregando certas igrejas? Eu me interesso, em especial, por aqueles que realizam, por culto, mais milagres do que Jesus Cristo ao longo de toda a sua vida.

Se são as obras sociais e afins a justificativa moral para a isenção, então seria preciso que o Estado tivesse controle e domínio sobre tais obras, para avaliar se a isenção se justifica mesmo. E convenham, né, doutores? Nessa área, ainda que prudente fosse, não se pode nem mesmo falar em classificação indicativa. Sim, respeito todas as religiões. Mas há certas teologias que, em termos intelectuais, deveriam ser proibidas para menores de 180 anos…

Sóstenes parece exercer um papel de liderança nessa coisa toda. Eu lhe recomendaria não abrir as portas da censura na área da cultura. Ou alguém acaba fazendo o mesmo na área da religião.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.