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Reinaldo Azevedo

Se Joesley existe, Deus está morto, e, então, tudo será lícito aos bandidos de Janot e Fachin

Reinaldo Azevedo

01/09/2017 16h56

Num país em que Ministério Público e Justiça se impusessem sobre Joesley Batista com a força da lei, do Estado de Direito, ele até poderia estar solto, à espera da sentença. Mas saberia ter alguns anos de cadeia pela frente. Bem menos, infinitamente menos (literalmente), do que os mais de três mil anos de pena. Afinal, nessa democracia hipotética, ele fez um acordo de delação.

Mas estamos na República de Banânia, não é? E o procurador-geral de Banânia é Rodrigo Janot. O relator do caso no Supremo em Banânia é Edson Fachin. Se é assim, é possível que Deus esteja morto e, pois, tudo seja permitido, como naquela frase que a personagem "Mitia", de Irmãos Karamazov (Dostoievski), nunca disse. E, com efeito, nem Mitia nem o autor afirmaram "Se Deus não existe, tudo é permitido".

O que há no livro, note-se, é um momento de perplexidade de Mitia com a concepção expressa pela personagem Rakitini, segundo quem Deus é uma ideia construída pelo homem. Perde-se, desse modo, o sentido do absoluto, no valor insuperável, que reunifica os fragmentos da tragédia de existir e lhe confere um sentido. Então vêm ecos de São Paulo, o Apóstolo: tudo me é permitido, mas nem tudo me é lícito. E a interdição existe porque há um Deus. Porque, se não há, vem a perplexidade em forma de indagação: então "tudo é permitido e, consequentemente, tudo é licito"?

No direito, esse Deus da contenção, do limite, do "onde aceitável", são as leis. Sem elas, sem o seu triunfo, sem a solenidade que necessariamente ensejam — e, em todo o mundo, os juízes vestem um hábito para lembrar aos demais que encarnam uma espécie de poder transcendente, que vai além as vontades particulares e das vicissitudes —, aí, sim, caíamos na desordem. Aí, então, tudo passa a ser permitido e tudo passa a ser lícito. O crime desaparece. Falando por metáfora: no direito, o "ateísmo" corresponde à morte da norma. Então só restam as milícias e a outra lei, alternativa aos códigos escritos e democraticamente pactuados: a lei do mais forte, tornado Deus de suas próprias vontades.

Viajei um pouco, mas volto ao ponto. A trinca Joesley-Janot-Fachin quase derruba o presidente da República. Aí se descobre que Joesley havia apagado trechos de gravação, ora recuperados. Esgotava-se ontem o prazo para que o homem entregasse o que tinha. Fachin resolveu lhe dar mais 60 dias. Não temos mais uma delação, para um "work in progress", que vai progredindo à medida da necessidade. Joesley se tornou também o senhor do tempo.

Se Joesley existe, então tudo é permitido.

Parece pouca coisa, mais não é. Se o acordo de delação que ele assinou for válido, então tem de ser anulado, a menos que não haja nada de relevante no material deliberadamente apagado. Se há, está caracterizada a omissão e a tentativa de distorcer o sentido das provas, de trata a Alínea "e" do Artigo 26 do acordo. Mas também isso não será aplicado.

Existe a Constituição, existem as leis, existem os acordos de delação, existem os tribunais, existem as regras. E existe Joesley.

E, se Joesley existe, então tudo é permitido porque o resto entra em falência.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.