Texto de Gaspari: Precisamos de cadáveres para restaurar a presunção de inocência?
Reproduzo abaixo trecho da coluna multitemática de Elio Gaspari, publicada na Folha deste domingo. Ah, sim: endosso todos os protestos. Quantas vezes vocês já me leram aqui que os maiores inimigos da Lava Jato são os açodados e os que agem ao arrepio da lei? Quantas vezes vocês já leram aqui que um bom modo de garantir a impunidade é desrespeitar o devido processo legal? Leiam. Volto em seguida.
Em junho de 2007 a casa de Genival Inácio da Silva, o Vavá, irmão de Lula, foi vasculhada pela Polícia Federal como parte de uma operação denominada de "Xeque-Mate". Investigavam-se contrabandos, tráfico de drogas e exploração de máquinas caça-níqueis. Os agentes ficaram na residência por duas horas, vasculharam até as roupas da mulher e da filha do suspeito. Vavá viu-se indiciado por tráfico de influência. Foram apreendidas duas cartas com pedidos de emprego e um envelope endereçado ao então ministro Aloizio Mercadante. E daí? Se os pedidos e a correspondência não foram encaminhados, tráfico não houve. Interceptações telefônicas provavam que Vavá prometera interceder por um policial que pretendia transferir um filho e pedira "dois paus pra eu" a um dos investigados, que fora preso. Semanas depois o Ministério Público, que chegara a pedir a prisão do irmão do presidente da República, denunciou 38 pessoas e cadê o Vavá? Nada. Faltavam "provas robustas" e ficou tudo por isso mesmo. Tanto para Vavá, como para os servidores que o expuseram à execração pública.
Diga-se que coisas desse tipo acontecem, mas diz-se também que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Pois caiu. Na última terça-feira (10), com autorização da Justiça, a Polícia Civil de Paulínia fez uma busca na casa de Marcos Cláudio Lula da Silva, filho do primeiro casamento da falecida Marisa Letícia, adotado pelo ex-presidente. Iam atrás de uma acusação anônima, feita ao Disque Denúncia. Na casa do cidadão deveriam encontrar grande quantidade de drogas. Acharam nada, mas levaram um computador. O delegado que autorizou a operação foi afastado.
Isso aconteceu duas semanas depois do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, acusado de obstruir a ação da Justiça numa investigação em que, antes de ser preso, ele não foi ouvido por ninguém.
As patrulhas policias e judiciárias prestam inestimável serviço ao pessoal que joga com as pretas. Para quem roubou, está roubando ou pretende roubar, esse é o melhor dos mundos.
Retomo
Pareceria uma provocação besta, sem ser, dar um "bem-vindo!" a Gaspari ao Estado de Direito — não que ele não o conheça, claro! Refiro-me especificamente a esse espírito lava-jateiro que anda por aí.
Escreve Gaspari sobre Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que se matou: "[o reitor] foi acusado de obstruir a ação da Justiça numa investigação em que, antes de ser preso, ele não foi ouvido por ninguém."
Epa! Esperem aí! Quantos foram os presos da Lava Jato e operações associadas que foram presos sem ser "ouvidos por ninguém"?
E o banqueiro André Esteves, que teve decretada a prisão preventiva, em razão de um ato que não cometeu? Quanto isso custou ao BTG Pactual? O que esse pequeno e bilionário engano custará a quem pediu a sua prisão? E o que dizer do STF que, patrulhado pelas milícias, prendia primeiro para perguntar só depois?
Não tenho apontado esses abusos desde sempre e pagado, por isso, um preço imenso? Não tenho me insurgido contra esses arroubos autoritários desses "savonarolas" e arcado com a patrulha dos imbecis?
Edson Faquin não afastou um senador da República sem que fosse, ao menos, ouvido? Alguém ouviu Andrea Neves antes de mandar prendê-la? Sim, é detestável o conjunto da obra que resultou na morte do reitor. Será que as pessoas precisam se suicidar para que se cobre rigor no cumprimento do devido processo legal?
E notem que não estou aqui a atestar a inocência de ninguém. À diferença do que a imprensa se habituou a fazer por aí, em matéria penal, não saio dando de barato que fulano ou Beltrano são culpados. Deixo isso para a fala irresponsável de um Roberto Barroso, por exemplo, que, ao votar numa ADI, resolve antecipar o julgamento de quem nem ainda é réu, como fez com Aécio.
Ou será que vamos nos ocupar de lembrar o princípio da presunção de inocência apenas quando acharmos, em razão de nossas idiossincrasias, que Fulano e Beltrano são inocentes?
Ou será que precisaremos de mais cadáveres para lembrar que a presunção de inocência vale mesmo para os culpados, até que não se provem… culpados?
Que diabos estamos fazendo de princípios civilizatórios sob o pretexto de combater a corrupção.