Presidentes militares não tinham como alegar ignorância sobre porões; o que se debatia era só o seu engajamento subjetivo com a violência
Não havia como os presidentes do ciclo militar ignorar a tortura e as execuções extralegais. Quando menos, dispunham de um eficiente serviço de informações. Mais: boa parte do trabalho sujo foi praticada em dependências do Exército, que era a Força que tinha o comando do governo. Sempre se discutiu aqui e ali o grau de comprometimento também subjetivo deste ou daquele com a violência fora da, atenção para a expressão!, "ditadura legal". É esse retrato de Ernesto Geisel que sai agora borrado de maneira assombrosa. Até esta quinta, era tido como alguém que conteve a fúria dos porões. A partir de agora, deve ser visto como o homem que tentou emprestar inteligência às trevas.
Um memorando da CIA de 1974, assinado pelo seu então diretor, William Colby, evidencia, sem espaço para ambiguidades, que o general que presidiu o país entre março de 1974 e março de 1979 tinha mais do que ciência de que o regime assassinava pessoas ao arrepio das leis impostas pela própria ditadura. Ele foi além do que fizeram seus antecessores: chamou para si a decisão sobre quem deveria viver e quem deveria morrer.
Ao revelar a existência do memorando, o pesquisador Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas e colunista da Folha, não apenas derruba o mito do "ditador consciencioso" como nos força a rever alguns episódios da história brasileira em que o então presidente Geisel aparece como o homem que, diante da tortura e das execuções extralegais, deu um "basta!". Não! O que o memorando evidencia é que Geisel só não gostava de ser desobedecido. Era permitido matar! Ele só fazia questão de ser consultado — por intermédio de João Baptista Figueiredo, chefe do SNI e depois presidente da República. Cabia a Figueiredo apontar o polegar para cima ou para baixo.
O memorando de Colby deixa claro: Milton Tavares, então chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), informou, em uma reunião a que estavam presentes Figueiredo e o próprio Geisel, que 104 pessoas haviam sido assassinadas de forma extralegal em 1973. Defendeu que a prática tivesse continuidade. Geisel pediu tempo para pensar. Dois dias depois, em 1º de abril de 1974, chamou o chefe do SNI e deu a ordem: sim, a matança poderia continuar, mas era preciso ser seletivo. Eliminar só os realmente perigosos e depois da prévia concordância de Figueiredo.