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Reinaldo Azevedo

Quase 60 palestinos morrem em Gaza; milhares estão feridos; uma das causas tem 70 anos; a outra é só efeito da estupidez dos... estúpidos

Reinaldo Azevedo

15/05/2018 04h44

Palestinos de Gaza enfrentam soldados israelenses na fronteira com Israel: quase 60 mortos (Foto: Reuters)

São, enquanto escrevo, 58 os palestinos mortos na fronteira da Faixa de Gaza com Israel nesta segunda. As autoridades palestinas falam em 2.700 feridos. Não é inverossímil porque os soldados israelenses receberam ordem para atirar contra quem rompesse a linha de defesa. É a cara dos terroristas do Hamas mandar os pobres desgraçados servir de bucha de canhão para que se confira depois verossimilhança à narrativa do martírio. Estariam em estado grave outras 116 pessoas. Na raiz do desastre há dois eventos: nesta segunda, os palestinos relembram a chamada "Nakba" — ou Dia da Catástrofe —, que corresponde à data oficial de fundação do Estado de Israel. A segunda motivação do protesto é a solenidade que marcou a transferência para Jerusalém da embaixada dos EUA, o que corresponde a reconhecer a cidade como a capital do país.

Estima-se que, entre 1947 e 1948, cerca de 700 mil palestinos deixaram a região onde se instalou o Estado de Israel. Embora tenha havido casos de violência praticada por milícias judaicas contra moradores árabes, a maior parte das chamadas "expulsões" decorreu da compra de terras que pertenciam a sírios e jordanianos que não moravam no local, deixando as propriedades sob o cuidado de colonos nativos, que tiveram de abandonar suas casas.

A verdade é que não havia uma "identidade palestina". Curiosamente, ela começa a ser forjada pelo estabelecimento do Estado de Israel. Até porque a "Palestina" não designava um povo, uma etnia ou uma identidade cultural, mas uma região. Ou por outra: o "povo palestino" é uma criação política para resistir à criação do Estado de Israel. Lembro isso em nome da precisão. Não estou aqui a declarar que "os palestinos não existem", como querem alguns. Se não existiam como identidade nacional, passaram a existir no momento em que a partilha da ONU determinou a criação dos dois Estados. Do ponto de vista estritamente legal, do direito internacional, o Estado de Israel passou a ser uma realidade junto com o Estado palestino. O primeiro existe, o segundo não.

A verdadeira "catástrofe" foi outra. À medida que os países árabes resolveram se opor à criação do Estado de Israel, os chamados "palestinos" foram forjando a sua identidade no "anti-israelismo". Os países árabes que resultaram da fragmentação do Império Turco-Otomano usaram, também eles, aqueles coitados como bucha de canhão contra o estado judeu.

Os imigrados da então chamada Palestina jamais conquistaram a cidadania nesses países. E, com alguma frequência, foram tratados na base da bala. O maior massacre de que foram vítimas foi praticado pelo governo da Jordânia, que expulsou do seu território os grupos armados palestinos entre setembro de 1970 a julho de 1971. O país tinha abrigado essas organizações depois da derrota dos árabes na Guerra dos Seis Dias. Como o tempo, as milícias passaram a ameaçar a estabilidade do governo jordaniano. Yasser Arafat dizia que 20 mil palestinos morreram no confronto. O governo da Jordânia fala em pouco menos de quatro mil.

Não conferir a cidadania a palestinos e seus descendentes foi a maneira encontrada pelos países árabes para manter o estado de permanente tensão, e essa política constitui um dos fundamentos que impede um acordo de paz. Essa decisão está na raiz da ficção dos mais de seis milhões de "refugiados" palestinos que estariam no exílio. Ora, "refugiados" por quê? Nem os 700 mil árabes que imigraram em 47 e 48, a maioria já morta, nem seus descendentes ganharam cidadania nos países árabes. São considerados um povo no exílio. Todas as vezes em que se tentou discutir com alguma seriedade um acordo de paz, a questão foi posta à mesa: a volta dos "refugiados".

Com uma população de pouco mais de 8 milhões de pessoas, Israel jamais permitirá esse retorno. Nesse total, há cerca de 1,8 milhão de árabes, que se identificam como "palestinos", que somam ainda algo em torno de 4,3 milhões na Faixa de Gaza (perto de 1,7 milhão) e na Cisjordânia (2,6 milhões). Quando se pensa no retorno, fala-se da volta de cerca de 6 milhões de palestinos. Trata-se de uma questão de equilíbrio demográfico que, em ultimo caso, poderia custar a existência do próprio Estado de Israel.

As guerras e Jerusalém
O atual status da região deriva de duas outras "catástrofes" para o povo palestino: a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a Guerra do Yom Kippur, em 1973. Nos dois casos, Israel sofreu a agressão. Venceu e conquistou territórios. E isso, claro!, alimentou o radicalismo das vertentes expansionistas do sionismo que nunca acreditaram na decisão da ONU: a criação dos dois Estados. Não são grupos que, por seu turno, invistam minimamente na paz. E agora chegamos à questão de Jerusalém.

Na chamada "partilha da Palestina", feita pela ONU, a cidade de Jerusalém deveria permanecer sob gestão de uma força internacional, já que considerada berço sagrado de judeus, muçulmanos e cristãos. Na guerra de 1948, a Jordânia anexou o lado oriental da cidade, e as forças israelenses, o lado ocidental. Em 1967, Israel ocupa também o lado oriental. Em 1980, o país declara a cidade a sua capital indivisível, o que não é reconhecido pela maioria das nações. A ONU considera ilegal a ocupação de Jerusalém Oriental, que os palestinos querem como sua futura capital. Por essa razão, a maioria dos países mantém suas respectivas embaixadas em Telavive.

Em 1999, o Congresso americano aprovou o reconhecimento de Jerusalém como a capital de Israel. Sim, isto mesmo: o Congresso americano houve por bem legislar sobre matéria internacional. E votou que a embaixada americana no país deveria ser transferida para a cidade até 1999, conferindo, no entanto, ao presidente a licença para adiar a decisão a cada seis meses. E assim foi feito ao longo dos anos para evitar apagar o incêndio com gasolina.

Mas não Donald Trump. Prometeu em campanha que operaria a mudança da embaixada e, bem…, está cumprindo uma promessa. Ao custo que se vê. Despachou para a cidade a filha, Ivanka, e o genro, o tal Jared Kushner, cujos rompantes o fazem parecer um verdadeiro "filho do sogro". Na cidade, deu a seguinte declaração para apaziguar os ânimos: "Como vimos nos protestos dos últimos dias, os que provocam violência são parte do problema, não da solução". Bem, considerando que as palavras fazem sentido, então seria preciso resolver o problema da violência eliminando a sua causa: os palestinos.

O Hamas apela a métodos terroristas? A resposta é "sim". A população de Gaza foi incitada a se lançar contra as forças israelenses. O grupo irriga a sua luta com o sangue dos miseráveis. O presidente dos EUA deveria atuar para apaziguar os ânimos, não o contrário. Mas Trump parece determinado a promover a guerra na região, não a paz. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é seu parceiro em outra ruidosa e perigosa empreitada recente: o governante israelense trouxe à luz documentos duvidosos, alguns comprovadamente velhos, sem validade, atestando que o Irã não estaria cumprindo a sua parte no acordo nuclear celebrado com os EUA, países europeus e a ONU.

Trump declarou que os EUA se retiravam do acordo e anunciou a volta das sanções. Agora, o país estuda punir as empresas europeias que negociarem com o Irã, um dos financiadores do Hamas. Parece-me que, dado o conjunto da obra, o governo de Israel comete o erro de apostar todas as suas fichas naquele que se coloca como seu único aliado incondicional, ainda que o mais poderoso. Os árabes não conseguiram varrer Israel do mapa. Olhem quantas vidas custou esse esforço delirante. Temo que, do outro lado das fronteiras (e se deve tratar a questão no plural), haja escatologia de mesma natureza, mas oposta: a suposição de que Israel, em algum futuro possível, possa banir os palestinos na região. Também não vai acontecer.

Esta terça promete mais algumas dezenas de mortes. São líderes estúpidos a fazer coisas estúpidas em nome de fantasias… estúpidas.

E a estupidez, nesse caso, pode matar.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.