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Reinaldo Azevedo

Relato até excessivo de ministra das Mulheres sobre estupros que sofreu na infância prova o erro de Bolsonaro sobre a educação sexual

Reinaldo Azevedo

18/12/2018 17h07

Impressionante o relato da ministra Damares Alves (de Mulheres, Família e Direitos Humano)s sobre os abusos de que foi vítima. Talvez o excesso de detalhes fosse desnecessário, mas não se pode impor a ninguém uma disciplina individual para o sofrimento. Damares decidiu que era melhor trazer à luz os demônios que a assombraram e aquela que considera ter sido a manifestação da salvação. Para mim, está bem assim.

Se o caso dissesse respeito ao "individuo Damares", nada a acrescentar, além de lamentar a tragédia e, sim, devemos nos regozijar com Damares. Em tendo acontecido tudo conforme disse, é notável que tenha se recuperado, levado adiante uma vida ativa, conseguindo se sobressair como líder religiosa e como política.

Mas é evidente que salta aos olhos que a sua história, e não tenho ideia se o presidente eleito a conhecia, é o melhor exemplo de que Jair Bolsonaro está absolutamente equivocado sobre educação sexual nas escolas. Sua tese essencial é a de que esse assunto concerne exclusivamente às famílias. Vejam o caso da ministra: segundo seus relatos, os abusos — ou melhor: os estupros reiterados — se deram com a conivência de seus pais. Suponho que não aprovassem a agressão, mas estavam envolvidos ou enredados, de algum modo, pelos pastores.

Notem mais: se a família não era um ambiente seguro para Damares, tampouco o era a igreja. Afinal de contas, foi agredida por líderes religiosos. Numa audiência pública em que se debatesse educação sexual, o seu depoimento seria evocado por alguém que defende o trabalho educacional, não o contrário.

É claro que é preciso conversar com as famílias. A coisa é delicadíssima. Mas e se o abuso estiver dentro de casa, como acontece com alguma frequência? Ao mesmo tempo, o educador tem de ter sensibilidade para não fazer vítimas inocentes, prudência que também devem ter os médicos. Sim, existe a falsa memória do molestamento, que também envolve as fantasias infantis sobre a sexualidade. O problema é termos um presidente pré-freudiano que não acredita na sexualidade das crianças, que ele chama "os inocentes". Sim, são inocentes. Mas têm sexualidade.

Damares conhece a coisa de perto. Assessora de Magno Malta, sabe o que aconteceu com o cobrador de ônibus Luiz Alves de Lima, à época com 35 anos, acusado de ter violentado a própria filha, então com dois anos. O acusado passou nove meses preso, até ser declarado inocente pela Justiça. Luiz mora em Vitória. Foi barbaramente torturado nas dependências do Centro de Detenção Provisória de Cariacica (CPDC), até quase ser morto. Dentre as práticas de tortura a que foi submetido no local, aponta asfixia com sacola na cabeça; choques elétricos, principalmente no órgão genital; e surras. Dia sim, dia não, segundo ele, era colocado amarrado dentro de tonel de água gelada. Como consequência das torturas, diz que ficou cego do olho direito e tem visão parcial do esquerdo (só enxerga entre 20 e 25%). Afirma que também teve dentes arrancados por alicates, mas as marcas visíveis da tortura não podiam ser observadas por seus familiares: a Polícia impedia a presença dos seus parentes na prisão nos dias de visitas, como conta Luiz.

Malta o transformou numa espécie de símbolo de sua atuação na CPI da Pedofilia. O homem teve a vida destruída por algo que não aconteceu. Pressionada, sua própria mulher chegou a dar um testemunho que o acusava.

O assunto pede o concurso de especialistas, não de palpiteiros. Não! A experiência de Damares também não é a melhor conselheira. A experiência pessoal, diga-se, pode levar a equívocos terríveis. Vamos fazer assim: a ministra sabe que a família e a igreja não garantem, por si, a segurança das crianças. A escola, um dos lugares da educação, é um lugar de esclarecimento. Com educação sexual, sim. Mas ministrada com competência e cuidado para não fazer vítimas as crianças nem seus pais.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.