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Reinaldo Azevedo

STF: discordo radicalmente do voto de Moraes; ministros têm direito à própria opinião, mas não à própria Constituição

Reinaldo Azevedo

07/02/2018 08h19

Alexandre de Moraes: ministro defende execução da pena após condenação em segunda instância. Um voto ruim

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo — sim, defendi, como indivíduo, a indicação de seu nome para a Corte —, votou nesta terça em favor da execução da pena depois da condenação em segunda instância. Bem, eu era contra, como sabem, e continuo contra. E NÃO POR CAUSA DA COISA EM SI, MAS EM RAZÃO DO QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO. Considero que um voto assim — seu e de outros que pensam o mesmo — constitui um dos modos de ser do "ativismo judicial", que tanto mal tem feito ao país e a política. Onde há excesso de ativismo judicial há, com certeza, excesso, se me permitem, de passivismo — sim, a palavra existe! —  da democracia.

Li o seu voto. Está aqui . Uma coisa é certa. Ele não se limitou apenas a seguir o que decidiu a maioria do colegiado em 2016. O ministro enfrentou o mérito mesmo. Pertence ao grupo favorável ao que chamam poeticamente de "execução provisória da pena". O nome é uma graça porque é um estupro do sentido. "Provisório" quer dizer "temporário", "o que não tem caráter permanente". Isso significa, então, que a pena pode ser interrompida, ficar restrita a um lapso temporal.

Como as palavras fazem sentido e como eu gosto do sentido que elas têm, pergunto: caso um tribunal superior decida, então, pela interrupção ou extinção da pena, via absolvição — ainda que em decorrência das "questões de direito" —, o que se faz da pena "provisória" já cumprida? O indivíduo ganha um tempo a mais de vida na Terra? Os ministros que assim pensam têm acesso direto a Deus para compensar a pena já cumprida? Ou a coisa é pior: consideram-se o próprio Deus e não veem mal nenhum em tomar um naco da vida daquele humano irrelevante?

Os defensores da tese arrumem, pois, um nome melhor para essa estrovenga. "Execução provisória" não pode ser. O nome certo é "pena antecipada", mas isso denunciaria o seu caráter obviamente arbitrário, não é mesmo? O ativismo judicial, que é passivismo democrático, vive de boas intenções e de eufemismos.

Moraes não inovou na argumentação. Preferiu, a exemplo de colegas que pensam a mesma coisa, ignorar o texto explícito da Constituição. E é o que me incomoda, não a coisa em si. Até acho razoável a execução da pena depois da condenação em segunda instância. Mas não com a Constituição que temos.

O julgamento em segunda instância, argumentou, esgota o que chamam "as questões de fato". Assim, duas instâncias julgadores teriam formado já a certeza da culpa. E o fazem com base dos dados do processo. Provas podem ser reexaminadas, revistas, confrontadas etc. À terceira instância, é verdade, cabe escrutinar as chamadas "questões de direito",  as jurídicas: erros processuais, inadequação na aplicação da pena, erro de tipificação penal, cerceamento do direito de defesa etc.

Muito bem. Vou concordar aqui com todos eles. Sim, estão todos certos. Mas aí me obrigo a ler o Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição:
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"

Pergunto a Moraes e aos demais: tendo a Constituição em mãos, eles chamam um condenado em segunda instância de "culpado"? Se o fazem, é ao arrepio da Constituição que prometeram obedecer. Outra pergunta: se o indivíduo não pode ser chamado de "culpado", como é que um "não-culpado" cumpre pena? Nem Tomás de Aquino conseguiria responder a esse paradoxo, não é?  E olhem que o Santo enfrentou, e bem, até o Paradoxo da Onipotência. Moraes e outros poderiam dizer, deixem-me, ver, "culpado o sujeito ainda não é; ele é um não-inocente". Ah, bom!

Um trecho do voto de Moraes chamou a minha atenção em particular. Eu o reproduzo:
"Da mesma maneira, não há nenhuma exigência normativa, seja na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), seja na Convenção Europeia dos Direitos do Homem que condicione o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Ambas – respectivamente artigo 8.2 e 60, 2 – consagram o princípio da presunção de inocência até o momento em que a culpabilidade do acusado for legalmente comprovada, respeitados os demais princípios e garantias penais e processuais penais já analisados".

Acho que estamos diante de um truque retórico que me parece abaixo do padrão intelectual do ministro, um jurista respeitado — e por isso defendi a sua indicação. As duas convenções preveem que ninguém pode ser condenado sem o duplo grau de jurisdição. Isso é coisa distinta de impor a execução da pena depois do segundo julgamento. Eu sei disso. Ele sabe disso. Todos os que se interessam pelo assunto sabem disso.

Ademais, Moraes não pode usar as convenções como instrumentos para apagar o que está na Constituição, a exemplo do que Roberto Barroso fez com as estatísticas. Moraes argumenta como se o Inciso LVII do Artigo 5º afrontasse as duas convenções. Não! Poder-se-ia dizer, aí sim, que ele fornece uma garantia a mais do que o que lá vai COMO EXIGÊNCIA MÍNIMA. A menos que ele prove que as duas convenções procuram cortar o excesso de garantias. Acho que é o contrário, não é, ministro? Revisito o Inciso LVII do Artigo 5º:
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"

Onde mesmo, ministro, há uma contradição entre o que vai acima e as convenções? Estivéssemos lidando com a Teoria dos Conjuntos, é correto dizer que o Inciso LVII contém as duas convenções. Logo, as garantias lá existentes pertencem ao conjunto normativo brasileiro, que oferece ao condenado um garantia suplementar.

Acho inaceitável que um ministro, Moraes ou qualquer outro, resolva "cortar" por conta própria um direito assegurado pela Constituição, sob o pretexto de seguir convenções internacionais.

E ainda que assim não fosse, não é? Os julgamentos feitos em tribunais superiores, no caso das pessoas com foro por prerrogativa de função, ignoram o duplo grau de jurisdição. Vale dizer: o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, mas tem uma realidade peculiar: há condenações que têm apenas um grau de jurisdição. Ou seria preciso, em nome da Convenção, anular todas as condenações do mensalão, certo? Em especial daquelas pessoas que não tinham "direito" a foro especial, mas foram julgadas pelo Supremo em razão da conexão dos casos. Dos 40 réus do mensalão, só três tinham o discutível direito de ser julgados pelo Supremo. A banqueira Kátia Rabello, por exemplo, foi condenada a mais de 17 anos de cadeia e não exercia cargo nenhum. Mesmo assim, teve um só julgamento.

Evocar a Convenção para dar uma garantia a mais me parece correto. Fazê-lo para cassar um direito constitucional me parece um exotismo teórico.

Os petistas chegaram a levantar essa questão à época. E eu os esculhambei. Por uma razão: assinar um tratado, por óbvio, não tira a soberania de um povo. Mas insisto: nem se cuida disso aqui. Naquele caso, com efeito, pessoas sem foro especial foram condenadas e presas sem ter direito a um segundo julgamento — e é o mínimo que prevê a Convenção Americana de Direitos Humanos. Que, em momento nenhum, não é, ministro?, impede um país de dar uma garantia suplementar.

E, claro!, resta a questão de sempre, tendo a Constituição como referência:
-ninguém quer dizer "ninguém";
-culpado quer dizer "culpado";
-"trânsito em julgado" quer dizer que não há mais recursos disponíveis, pouco importando se se trata de questões de fato ou de direito.

Infelizmente, nessa questão, Moraes resolveu integrar o time dos que militam no direito criativo e, sem gostar da Constituição que temos, resolvem aplicar aquela que têm na cabeça. Espero que seja um espasmo e pare por aí.

Até porque, em casos assim, eu dou a sugestão de sempre a ministros do Supremo e juízes: se querem fazer leis, que disputem o voto do povo.

Sim, os juízes têm direito à sua própria opinião e a seu próprio voto, mas não têm direito à sua própria Constituição.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.