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Reinaldo Azevedo

Dirceu fala ao El País e insiste na distinção entre “vencer eleição” e “tomar o poder”. Não é ameaça revolucionária, mas continua ruim

Reinaldo Azevedo

28/09/2018 06h45

José Dirceu: distinção entre ganhar eleição e tomar o poder só serve à confusão

José Dirceu concedeu uma longa, impressionante e imprudente, para os petistas ao menos, entrevista à edição brasileira do jornal El País. Ali está, inequivocamente, um homem de esquerda. E uma mentalidade de esquerda é necessariamente presa de um raciocínio binário: "Estamos avançando ou estamos recuando?" Avançando e recuando em quê? Ora, no propósito de tomar o poder. Mais: um esquerdista também tem um horizonte escatológico, finalista. Por isso, está sempre vivendo um processo: daí que trabalhe, e ele faz isso, com o conceito de "acúmulo de forças". Para uma mentalidade de esquerda, o passado está em constante revisão para justificar a quebra de um princípio, o presente e só uma passagem, e o que importa é vender um futuro redentor. Prestem atenção a esta passagem:
Dentro desse contexto, o senhor acha que existe a possibilidade de o PT ganhar essas eleições e não levar?
Acho improvável que o Brasil caminhará para um desastre total. Na comunidade internacional isso não vai ser aceito. E dentro do país é uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição.

Tanto esquerda como direita, nas redes sociais, estão fazendo alvoroço com o trecho. Bem, meus caros, minhas caras, é preciso reconhecer que a capacidade de leitura não é a qualidade mais saliente destes dias. Sim, estamos diante de uma consideração que está fora dos fundamentos de um regime democrático. Mas não como se diz por aí.

Nesse caso, é preciso mais atenção à pergunta do que á resposta. O El País quer saber se existe a possibilidade de um golpe militar. E parte da resposta é a que daria qualquer pessoa de bom senso. Dirceu, eu e o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, não acreditamos nessa possibilidade. E uma das razões apontadas pelo petista é verdadeira: não existe espaço para golpes militares no mundo contemporâneo. Vejam a dificuldade que há para desalojar mesmo um governo criminoso, como o de Nicolas Maduro — que tem o apoio do PT, note-se.

Mas aí Dirceu, aos 72 anos, resolveu acordar o guerrilheiro tardio. Ao afirmar que, em caso de golpe, "nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar eleição", sugere, e não há outra interpretação possível, que haveria resistência ao golpe. Até aí, bem. Os resistentes poderiam contar comigo. Mas qual resistência? No contexto dado, para que ocorra a "tomada do poder", teria de haver, então, uma resistência armada. Com quais armas, Dirceu? Faríamos tiro ao alvo com cuspe para enfrentar os canhões?

E só retórica doidivanas. Logo, isso não quer dizer nada porque, ademais, depende de um causa que não haverá, o que dispensa comentários adicionais sobre as consequências. O ponto é outro. Não é a primeira vez — podem procurar e acharão — que Dirceu se sai com a conversa de que o PT ganhou a eleição, mas não o poder. As pessoas curiosas, como sou, gostariam de saber: qual é a diferença?

Eu mesmo respondo: é dar consequência ao projeto hegemônico do petismo, que, enquanto esteve no Palácio e enquanto a economia não fazia água, organizou-se para aniquilar os outros partidos. E isso é apenas um fato. Não por acaso, na entrevista, o ex-ministro não reconhece um miserável erro do governo Dilma. Frauda a história ao afirmar que o país foi à bancarrota por obra da sabotagem dos partidos de oposição — minoritários, diga-se.

Trecho de outra resposta sua é bastante esclarecedor. Indagado por que, então, Lula, com a popularidade, o prestígio e apoio que tinha, não fez as reformas, ele responde: "Muitos podiam ter a opinião de que era preciso fazer as reformas mesmo que isso custasse para nós cair do Governo." Pois é… Um partido que se preocupa com o país, não em se eternizar no poder, faz o que tem de ser feito. Ainda que perca a eleição. Depois tenta voltar, ora essa…

Em 2016, depois do desastre do governo Dilma e do impeachment, o PT ensaiou uma autocrítica. E lá se lê esta pérola:
"Fomos descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty; e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação".

Vale dizer: o PT acha que não aparelhou o Estado o suficiente e que errou ao não partidarizar as Forças Armadas e a diplomacia. Isso é que seria, em parte ao menos, tomar o poder, não apenas ganhar a eleição. Bem, é desnecessário dizer que Hugo Chávez e Nicolás Maduro fizeram rigorosamente o que vai acima.

Caso o PT vença a eleição e caso volte ao poder com esse espírito, escolhe, de novo, o caminho da deposição. Não sei se Dirceu percebeu, mas há mais gente, só que no outro extremo, que também está disposta a tomar o poder, ganhando ou não a eleição. Não haverá golpe. Mas quem disse que golpe é o único item no cardápio das coisas ruins?

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.