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Reinaldo Azevedo

Dodge se opõe à concessão de habeas corpus a Lula; seu parecer traz um erro técnico absurdo e um erro lógico insanável

Reinaldo Azevedo

15/02/2018 02h08

Raquel Dodge:: seu parecer contra habeas corpus é absolutamente frágil. Não é que ela ignore a lei. Ocorre que sua tese é ruim

Sim, o texto é longo porque a questão é complexa, com muitos aspectos a serem sopesados. Não se presta à gritaria de torcedores disfarçados de jornalistas. Quem escreve a respeito tem de ler, de estudar, de pesquisar, de confrontar dados. Vamos lá.

Você é antipetista e quer Lula preso, pouco importando os argumentos técnicos? O que vai abaixo não é para você.

Você é petista militante, como André Singer, e acha que Lula tem de ficar solto, pouco importando as questões jurídicas? O que vai abaixo também não é para você.

O texto abaixo é para quem ainda acredita que todos ganharemos numa democracia de direito.

Quem faz torcida por uma coisa ou por outra é claque.

A mim, interessam as questões técnicas.

Em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal nesta quarta, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se posiciona contra a concessão de habeas corpus preventivo ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A íntegra de sua manifestação está aqui aqui. Ela elenca, como vocês verão, oito razões que justificariam a não-concessão do HC, embora, de fato, apresente apenas três argumentos. Destes, dois se referem a questões realmente de direito, que têm a ver com a técnica. O outro não passa de peroração contra a impunidade, com um fabuloso salto triplo carpado da lógica. Enquanto eu lia, parecia ver Diane dos Santos fazendo ginástica ao som de "Brasileirinho", tendo como quadra a Constituição. Trato primeiro das duas questões técnicas.

1: ARE E EFEITO VINCULANTE
Atenção, a doutora apresenta um mesmo argumento desdobrado em quatro itens, a saber: os de número 2, 3, 4 e 5. O 3 traz a síntese do erro mais evidente:

"As decisões do Plenário do STF em recursos extraordinários com repercussão geral, como no ARE 964246, têm eficácia vinculante geral."
Nota para vocês entenderem o resto: "ARE" quer dizer "Agravo em Recurso Extraordinário". O ARE 964246 é aquele de novembro de 2016, quando, por 6 a 5, o Supremo decidiu que a pena PODE — NÃO QUER DIZER "DEVE" — ser executada depois da condenação em segunda instância.

Onde está o erro?  É falso que as decisões em recursos extraordinários com repercussão geral têm eficácia vinculante geral, como ela escreve. Não têm, não! A menos que doutora Raquel tenha uma Constituição só dela, cujo conteúdo desconhecemos, o que vai no Parágrafo 2º do Artigo 102 da Carta diz outra coisa, a saber:
"§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal."

Logo, o efeito vinculante, na Constituição, se limita às ações diretas de inconstitucionalidade (ADINs) e às Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs). A lei acrescentou uma terceira possibilidade: as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs). Não sei de onde a doutora tirou que os "AREs" implicam efeito vinculante.

Qual a diferença?
Bem, a esta altura, você tem o direito de perguntar qual a diferença prática entre "repercussão geral" e "efeito vinculante". No primeiro caso, os tribunais, inclusive o STF, ficam orientados a seguir a decisão tomada, mas a tanto não são obrigados. Tanto é assim que a decisão pode, sim, ser ignorada. E ao Ministério Público, a quem compete a pretensão punitiva, cabe entrar com recurso. Não custa lembrar, ademais, que, depois da ARE 964246 (aquela decisão de 2016), os ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes já concederam habeas corpus a condenados em segunda instância.

Ora, quando se trata de efeito vinculante, aí não há recurso possível. Como a doutora Raquel pode afirmar que há "efeito vinculante geral" se o mérito de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade ainda será examinado pelo pleno? Se o que ela diz fosse verdade, essa questão já estaria prejudicada. E não haveria votação nenhuma.

Reitero:  embora a procuradora liste OITO RAZÕES, o que serve para engordar o seu parecer, de 52 páginas, os itens 2, 3, 4 e 5 dizem rigorosamente a mesma coisa. Trata-se da argumentação desmontada acima.

2 – SÚMULA 691
Escreve a procuradora no item 1:

"É incabível habeas corpus contra decisão liminar do STJ, conforme enunciado 691 da Súmula, sobretudo porque a decisão impetrada fundamenta-se em precedente vinculante do STF".

Bem, já sabemos que a decisão do STF de 2016 não era vinculante (erro que ela sustenta nos itens 2, 3, 4 e 5).  Vamos ao resto. Com efeito, a Súmula 691 estabelece que não cabe, em regra, habeas corpus nesse caso, mas abre duas exceções:
a: concessão da liminar para evitar flagrante constrangimento ilegal;
b: se a negação da liminar implicar manifesta negativa de jurisprudência do Supremo.

No caso, poder-se-ia evocar o item "a". Mas nem vou me ater a isso. Atentemos para o devido processo legal. O ministro Edson Fachin poderia ter recusado não apenas a liminar, mas também o habeas corpus, situação que ensejaria um agravo regimental para a Segunda Turma. E esta decidiria pelo afastamento ou não da Súmula 691. Mas o ministro não fez isso. Preferiu, como se diz em linguagem técnica, "afetar o pleno" — isto é, submeter a questão aos outros 10 ministros, pedindo, ademais, que seja julgado o mérito da Ação Declaratória de Constitucionalidade que trata do assunto. Nesse caso, sim, o Supremo tomará uma decisão com EFEITO VINCULANTE.

Assim, o apelo da procuradora à Súmula 691 é descabido porque essa questão acabou vencida pela decisão tomada pelo relator.

TRIPLO SALTO CARPADO HERMENÊUTICO
Raquel Dodge dedica os itens 6, 7 e 8 à demonstração de que a execução da pena em segunda instância não fere o que dispõe o Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição, a saber:
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

O que vai abaixo serve para doutora Raquel e para qualquer outra pessoa que defenda a execução provisória da pena:
– ninguém quer dizer "ninguém", "pessoa nenhuma", "conjunto vazio";
– culpado quer dizer "culpado", sem sinônimos;
– trânsito em julgado quer dizer que não há mais recurso possível.

Nem a doutora nem os ministros outros que defendem a execução da pena depois da condenação em segunda instância conseguiram enfrentar essa questão. De modo um tanto patético, diz a procuradora no Item 6:
"O princípio da presunção de inocência (artigo 5º-LVII Constituição) é compatível com o do duplo grau de jurisdição. Os direitos individuais do réu são assegurados pela revisão da condenação pelo tribunal."

Com a devida vênia, nem chega a ser um sofisma, situação em que se cobraria ao argumentador um raciocínio mais sofisticado. Ora, quando nos referimos por perífrase ao Inciso LVII do Artigo 5º, dizemos: "é aquele da presunção da inocência". Aí diz a doutora: tal presunção é compatível com o duplo grau de jurisdição. Digamos que, como afirmação genérica, isso seja verdade. A questão é saber se a procuradora está ou não enfrentando o que está na Constituição. E ela não está.

Dou um exemplo para demonstrar o que fazem Raquel Dodge e outros que argumentam do mesmo modo. E peço desculpas se a coisa parecer um tanto pedestre.

A Constituição e o casamento de Rosinha
Rosinha decidiu que, para se casar com ela, o pretendente tem de ter uma fazenda, um trator e 50 cabeças de gado. Ribamar quer desposar a moça. É proprietário de uma fazenda e de 70 reses. Essas qualidades, diria doutora Raquel, "são compatíveis" com as exigências de Rosinha. É fato! Mas cadê o trator, procuradora?

Com efeito, para que a questão chegue a um tribunal superior, senhora, é preciso que a condenação em primeira instância tenha sido confirmada em segunda, restando à terceira as chamadas questões de direito. Ocorre que a Rosinha só casa com trator: o trator é o trânsito em julgado.

Absurdo
A doutora apela ao absurdo quando afirma, no item 7:

"O trânsito em julgado da condenação não condiciona a presunção de inocência."
Não sei o que a procuradora entende pelo verbo "condicionar". Parece-me que ela faz aí uma inversão escandalosa do ponto de vista lógico. Com efeito, não é o trânsito em julgado (não haver mais recursos possíveis) que condiciona (traduz, expressa, determina, estabelece) a presunção da inocência. É A PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA QUE CONDICIONA O TRÂNSITO EM JULGADO; é a presunção de inocência que se traduz, que se expressa, que determina e que estabelece o trânsito em julgado!!!

É ASSIM NA CONSTITUIÇÃO. E AS PESSOAS TÊM TODO O DIREITO DE NÃO GOSTAR DA DITA-CUJA. MAS TODOS ESTÃO OBRIGADOS A SEGUI-LA.

A argumentação atinge as raias do cômico quando a procuradora afirma, também no item 7
"O artigo 283 do CPP deve compatibilizar-se com a Constituição, ao invés de condicionar sua interpretação."

Trata-se de um despropósito ímpar. O Artigo 283 do Código de Processo Penal diz quais são as situações em que uma pessoa pode ser presa. Entre elas, esta:
"Em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado".

Estabelece o Inciso LVII do Artigo 5º da Constituição:
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

É uma trapaça retórica e histórica afirmar que o Artigo 283 do CPP está condicionando a interpretação da Carta. Até porque os dois diplomas legais, nesse caso, dizem a mesma coisa. Nem se cuida de dizer que são "compatíveis". Eles têm a mesma redação.  O código define as quatro prisões possíveis:
– flagrante;
– prisão temporária;
– prisão preventiva;
– condenação com trânsito em julgado.

E a Constituição estabelece que ninguém é "culpado" antes do trânsito em julgado — e isso quer dizer que condenado ainda não é.

Ademais, e isto deveria bastar para matar a questão, lembro à doutora que o Artigo 283 do Código de Processo Penal teve sua redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011. A Constituição foi promulgada em 1988. Logo, o tal artigo do CPP, com efeito, não teria como condicionar a interpretação da Carta porque ele foi redigido depois dela, segundo seus fundamentos. Eu estou enganado, ou a Lei 12.403 é que passou por um exame de Constitucionalidade? Que eu saiba, a Constituição não foi submetida a um exame de processualística penal, né?

O Supremo concederá ou não o habeas corpus a Lula? Não sei. O parecer da Procuradoria-Geral da República não para de pé.

Como eu não gosto do PT e acho que sua eventual volta ao poder seria desastrosa, eu poderia me abster de fazer este texto. Ocorre que eu passo, Lula passa, o PT passa. As instituições ficam. Se endosso uma falácia contra o chefão petista, não teria como reclamar quando usarem uma falácia contra mim. Afinal, se aprovei o método, não cumpre fazer objeções sobre os eventuais atingidos.

Doutora Raquel é uma mulher inteligente. O seu parecer só é tão fraco porque a causa é ruim.

 

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.