Moro continua bom de marketing, mas é ruim de lógica; fala à GloboNews não faz sentido. O porte de arma, o que ele diz e o que diz o chefe
Sérgio Moro, agora ministro da Justiça e Segurança Pública, continua bom de marketing pessoal. Como político, no entanto, é obrigado a falar de uma variedade maior de temas e a disputar espaço com seus pares, o que inclui o presidente da República. Seu discurso já é bem mais desencontrado do que antes.
Sua assessoria vazou para a imprensa que ele, Moro, queria limitar a dois o número de armas por indivíduo. Jair Bolsonaro preferiu o dobro: quatro. Então tá.
Em entrevista à GloboNews, o ministro afirmou ontem à noite que inexiste em sua pasta qualquer estudo para flexibilizar o porte de armas:
"Fiquei concentrado sobre aspectos de posse e não existe dentro da minha pasta nenhum movimento nesse sentido envolvendo porte de armas. É uma situação diferente. Se houver (no futuro) alguma proposição nesse sentido, tem que ser bem estudada. Esse é um tema muito delicado. A posse é algo um pouco mais limitado, oferece menos riscos".
Seu chefe, no entanto, vai em sentido oposto. Bolsonaro escreveu numa rede social:
"Após voltarmos de Davos, continuaremos conversando com os ministros para que, juntos, evoluamos nos anseios dos CACs [sigla para caçadores, atiradores e colecionadores], porte, monopólio e variações sobre o assunto, além de modificações pertinentes ao Congresso, como redução da idade mínima! O trabalho não pode parar! Boa noite!"
Como já afirmei aqui, qualquer mudança pertinente à posse tem de ser apresentada por projeto de lei. Tem de passar pelo Congresso. E Moro, como ministro da área, terá de dar a sua chancela moral.
Membros do governo andam prestando pouca atenção ao que estão falando. A lógica e o sentido viraram seus piores inimigos. Na entrevista, o próprio ministro da Justiça, tido por muitos como homem de sagacidade única (a seu modo, não deixa de ser…), afirmou, referindo-se ao Estatuto do Desarmamento, que, se a política desarmamentista tivesse êxito, seria esperado que o Brasil não "obtivesse ano a ano recordes de homicídios".
Há vários problemas na afirmação. Ele não dispõe de dados para saber quantas dessas mortes foram praticadas por armas legais. A suposição é que a maioria tenha sido vitimada por ilegais. Parece-me que a lógica obriga a considerar, então, que a tarefa de um governo preocupado em reduzir o número de homicídios deveria estar voltada justamente para o combate à posse e ao porte ilegais, não? Em que o aumento do número de armas, ainda que registradas, poderia minimizar a tragédia que vivemos?
Mais ainda: um ministro da segurança está obrigado a considerar as disparidades entre os Estados. Enquanto, em São Paulo, há menos de 10 mortos por 100 mil habitantes; no Rio Grande do Norte, são 68; no Acre, 63,9; no Ceará, 59,1; em Pernambuco, 57,3. Os dados, relativos a 2017, são do Fórum Nacional da Segurança Pública. Qual é a hipótese do nosso especialista? Eu lhe dou uma dica: a Polícia de São Paulo é a que mais apreende armas no país, em números relativos e absolutos.
Alguém dirá: "Ah, mas você mesmo, Reinaldo, está falando da posse ilegal…" É verdade. Eu estou afirmando, para quem não entendeu, que aumentar o número de armas legais não vai tirar de circulação as armas ilegais. Logo, a afirmação de Moro de que se batem recordes de homicídio, apesar da política desarmamentista, é falaciosa. A explosão de mortes não evidencia, por si, a ineficiência dessa abordagem; ela prova, aí sim, a incompetência no Estado no combate às armas ilegais. O raciocínio binário do ministro só confunde as coisas.
Um colega de Moro, Onyx Lorenzoni (Casa Civil), afirmou, por seu turno, que o governo espera regularizar nada menos de 8 milhões de armas ilegais. Não sei de onde tirou esse número. Mas vá lá… Se ele espera a regularização, estariam, então, todas elas nas mãos das chamadas pessoas de bem, não é? Até porque o Estatuto traz exigências para a posse, que ainda não foram revogadas, a saber:
"I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei."
Os proprietários de 8 milhões de armas se enquadrariam nesse perfil?
Bem, em sendo, como sugere o ministro, cidadãos aptos a possuir uma arma e em sendo verdadeiros os números, então este é mesmo um país armado até os dentes. E se deve supor a existência de muitos outros milhões que não vão ser regularizadas porque seus proprietários ou portadores são profissionais do crime — ou, vá lá, não se enquadram nas exigências.
Moro está moralmente obrigado a mudar a conclusão a que chegou: "Se o armamentismo tivesse êxito, o Brasil não bateria ano a ano recordes de homicídio".
Se o ministro não entendeu a lógica, sugiro que leia o texto de novo. Os números que temos, no que concerne aos homicídios, não provam a ineficácia do combate às armas; ineficaz, como política de segurança pública, é armar-se. Legal ou ilegalmente.
E, por óbvio, como reconhece o próprio Moro, "o porte é um tema bem mais delicado". Passam de 600 mil as armas legalmente registradas. Onyx espera acrescentar a esse número mais oito milhões. Imaginem, com uma eventual liberação do porte, isso tudo a circular por aí.
E, ainda assim, os bandidos continuariam com os seus próprios instrumentos de trabalho, não é mesmo?, já que aumentar a posse legal não retira arma da mão de criminosos.