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Reinaldo Azevedo

Moro crava coisas perigosas em decisão contra Lula; fosse como diz, Lava Jato teria de cair

Reinaldo Azevedo

30/08/2017 03h16

Trechos do despacho do juiz: no destaque em vermelho, os critérios discutíveis; em azul, ainda a sombra do amigo

O que Moro escreveu nesta terça, num despacho, se levado a sério, desmonta a Lava Jato. E passará ela a ser o verdadeiro castelo de areia. Também está claro que o juiz não vê problema nenhum em usar um peso e duas medidas quando isso lhe convém. Sim, vou explicar por quê.

A defesa de Luiz Inácio Lula da Silva pediu ao juiz Sérgio Moro substituição de uma testemunha na ação penal em que o petista é acusado de ter recebido propina da Odebrecht para a compra de um terreno que seria destinado à construção do Instituto Lula. Em vez de Maria Lúcia de Oliveira Falcon, que está na lista e ainda não foi ouvida, os defensores do ex-presidente indicaram justamente um ex-advogado da empreiteira: Rodrigo Tacla Duran.

O juiz negou a substituição. Vou lembrar mais detalhes do caso e tratarei dessa negativa. O que realmente causa espanto ao mundo do direito são os motivos alegados por Moro. Transcrevo o trecho principal e comento:
"Rodrigo Tacla Duran é acusado de lavagem de dinheiro de cerca de dezoito milhões de dólares, teve a sua prisão preventiva decretada por este Juízo, fugiu, mesmo da decretação da prisão, e está refugiado no exterior (….)
A palavra de pessoa envolvida, em cognição sumária, em graves crimes e desacompanhada de quaisquer provas de corroboração não é digna de crédito, como tem reiteradamente decidido este juízo e as demais Cortes de Justiça, ainda que possa receber momentâneo crédito por matérias jornalísticas descuidadas".

Opa! Então a coisa se complica bastante, e a Lava Jato tem de ser anulada. É claro que isso é uma ironia. Eu estou enganado ou a quase totalidade dos delatores é composta de bandidos, sejam os que negociam com procuradores na primeira instância, tendo Moro e outros como juízes, sejam os que negociam com o Procurador Geral da República?

Quer dizer que a Lava Jato não dá ouvidos a "envolvidos" em falcatruas? É mesmo? E como fica Joesley Bastista, que confessou 245 crimes? E como fica Lúcio Funaro? Notem que este não é um mero "envolvido", como fala o juiz. Trata-se de um condenado. Lembro que o pedido de sua prisão, feito pela PGR, tem 28 páginas e lista 10 anos de safadezas. Fez um acordo de colaboração à época do mensalão e simplesmente mandou a Justiça às favas e continuou a delinquir.

"Ah, Reinaldo, isso é com Janot, não com Moro…" Tá certo. Então fiquemos na esfera de Moro: ele negociou não com os "envolvidos", mas com os "condenados" Pedro Correa e Marcelo Odebrecht, por exemplo. E Alberto Youssef? Este já havia descumprido os termos de uma delação premiada vinda lá do tempo do escândalo do Banestado. E o juiz era Moro.

Se o magistrado não quer o testemunho de Tacla Duran, tem de arrumar motivo melhor do que o alegado. Ou, então, tem de revelar o real motivo.

Não dá para ignorar o fato de que o advogado, hoje morando na Espanha, é também o homem que acusa um amigo pessoal do juiz — o advogado Carlos Zucolotto Jr. — de lhe ter cobrado US$ 5 milhões, "por fora", para aliviar uma eventual multa no caso de uma delação premiada. Segundo Tacla Duran, procuradores da Lava Jato haviam estabelecido uma multa de US$ 15 milhões por sua delação. Zucolotto, padrinho de casamento de Moro e ex-sócio de sua mulher, teria entrado na parada: o valor seria reduzido a US$ 5 milhões, desde que outro tanto fosse pago "por fora". Para quem? "O pessoal" que o ajudaria.

Moro teve uma reação inusual, como já apontei aqui. Saiu em defesa do amigo sem que tenha havido uma miserável investigação e desqualificou o denunciante — afinal, não seria uma pessoa de bem… É mesmo? E a maioria dos outros delatores? Asseverou a inocência do seu compadre com um argumento, sem dúvida, matador: "Ele é meu amigo!". Seus adoradores na rede gritam, exclamam, vituperam: "Olhem que absurdo!!!"

Mesmo alguns analistas em cuja decência intelectual cheguei a apostar — mera aposta moral — se quedam sobre quatro apoios quando o assunto é Moro, incapazes — porque isso seria, por si, um crime! — de apontar uma contradição no homem sem mácula.

Ele e seus amigos da Lava Jato podem fazer acordo com o demônio, eventualmente interessado em passar uma temporada no céu, e os que se ajoelham aos pés de humanos, mistificadores ou não, aplaudem. Se, no entanto, alguém que o magistrado tem na cota de adversário se atreve a evocar uma testemunha que causa incômodo ao herói de manual, então a vida pregressa do sujeito é usada como fonte de desqualificação.

E Moro nem mesmo esconde que se trata de uma questão pessoal. Ao se referir a Tacla Duran, escreve ter sido o advogado um beneficiário de "momentâneo crédito" em razão de "matérias jornalísticas descuidadas". O juiz não se conforma com o fato de a jornalista Mônica Bergamo tê-lo, digamos, "desobedecido" e publicado um texto que não era do seu agrado.

E faz sentido ouvir Tacla Duran no tal processo? Resposta: sim! Ele era o advogado que cuidava justamente do tal "Departamento de Operações Estruturadas" da Odebrecht. Se de lá saiu, segundo as delações, o dinheiro para o tal terreno, ouvi-lo não é nenhum despropósito.

Se dou crédito ao advogado? Repudio o "argumentum ad hominem" e também "o argumentum ad amicum". Eu sou aquele que escolheu o caminho do Estado de Direito. E que acredita que, nas democracias, não há salvação fora dele, ainda que seja grande a tentação de alguns de operar nas franjas da quase legalidade.

Ademais, quero saber com quais critérios opera a autoridade. Se a palavra de um "envolvido", como quer Moro, não merece crédito, o que se deve dizer com a de um "condenado"?

Hein, juiz?

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.