Topo

Reinaldo Azevedo

Operação Capitu 1: A Polícia Federal submete a personagem de Machado a um julgamento e a condena; trata-se de um desrespeito à obra

Reinaldo Azevedo

10/11/2018 21h53

Machado de Assis, autor de Dom Casmurro: PF ousou condenar Capitu, o que o autor não fez

Vou expressar aqui uma estranheza e uma discordância que dizem respeito à tal "Operação Capitu". Fazer o quê? É um dos trabalhos que cabem a um jornalista, a um analista, a um cronista da vida pública. As acusações que levaram à prisão temporária de Joesley Batista estão aqui, em reportagem da Folha. Sempre que posso, leio os documentos oficiais que embasam essas ações. Não o fiz ainda e fico com o que veio a público. Basta para expressar a discordância, sem chance de que mude de ideia, e a estranheza — esta talvez se desfaça com mais informações.

Comecemos pela discordância. Por que "Operação Capitu"?. A PF responde: "Durante as investigações, houve clara comprovação de que empresários e funcionários do grupo investigado – inicialmente atuando em colaboração premiada com a PF – teriam praticado atos de obstrução de justiça, prejudicando a instrução criminal, com o objetivo de desviar a PF da linha de apuração adequada ao correto esclarecimento dos fatos".

Entendi. Pelo visto, há admiradores de Machado de Assis na Polícia Federal, o que é bom. Mas talvez devam tomar um pouco mais de cuidado com a personagem mais famosa do autor, do livro "Dom Casmurro".

Leiam trecho do Capítulo XXXII, um dos dois intitulados "Olhos de Ressaca", quando Bentinho, o marido que tem certeza de que foi traído pela mulher e por Escobar, seu melhor amigo, volta ao passado e rememora os olhos da jovem Capitu:
"Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, 'olhos de cigana oblíqua e dissimulada.' Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. (…) Olhos de ressaca? Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca".

A imagem volta com força no Capítulo CXXIII, que tem o mesmo título. Nesse caso, Bentinho mira a mulher no velório de Escobar, que morrera afogado. E então se lê:
"Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas…(…) Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã."

Não deixa de ser curioso. O mistério, construído para ser insolúvel em "Dom Casmurro", é saber se Capitu e Escobar traíram Bentinho ou não. Até julgamentos já se fizeram em cursos de direito. A crítica literária se divide. Também os leitores. Eu, por exemplo, alinho-me entre os que avaliam que a pobre era inocente. Os indícios da traição sempre são filtrados pelas impressões do que se pensa traído. Mais do que isso: ele força as circunstâncias de modo a que Capitu não tenha saída. Quanto mais ela se mobiliza para enfrentar a desconfiança, mais alimenta a suspicácia daquele que a observa à cata de indícios que a condenem. Vejam o caso do velório. Não é o descontrole emocional de Capitu que leva Bentinho a concluir, mais uma vez, que a traição aconteceu, mas a sua contenção. E se fosse o contrário? E se ela se desesperasse? Ora, também seria um indício da trama — ou tramoia? — concebida pelo narrador a servir como prova.

Ao chamar a dita operação de "Capitu" porque os investigados teriam "dissimulado" ações criminosas, a Polícia Federal atua como tribunal e condena Capitu, a de Machado. Também esse mistério estaria desvendado, à revelia do autor: ela traiu Bentinho. A condenação se dá com base numa leitura muito larga das "provas indiciárias", que estão no Artigo 239 do Código de Processo Penal: "Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias."

Huuummm… A "indução" resta evidente, mas cadê, na obra, a "circunstância conhecida e provada"? Talvez exista na operação. A ver. Então, meus caros, nesta primeira parte da minha abordagem, nada digo sobre a ação policial em si — a estranheza fica reservada para a segunda parte. Deixo, no entanto, um convite aos agentes federais: mudem o nome da operação. Se escolheram "Capitu" porque têm certeza dos atos criminosos dos investigados e de sua dissimulação, Capitu não tem nada com isso. A construção de Machado de Assis é uma obra fechada de interpretação aberta. E não admite condenação. Incluam Capitu fora desse rolo. Agora vamos a Joesley Batista.

Leia Operação Capitu 2: Por que Joesley e demais delatores usariam crimes maiores para omitir os menores? E o caso do "Charuto Espacial"

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.